Por Mara Gomes para as Blogueiras Negras
Vale milhões de vezes mais a vida de um único ser humano do que todas as propriedades do homem mais rico da terra
Che Guevara
A medicina é considerada uma das mais requisitadas e importantes profissões existentes no mundo e por isso é preciso ter um grande conhecimento para se tornar um médico, o qual deve ser alcançado com longos anos de estudo. Para conseguir cursar medicina no Brasil é preciso ter um conhecimento escolar de qualidade. De acordo com as oportunidades que se encontram no nosso país, esse conhecimento é adquirido, principalmente, em escolas particulares e cursinhos caríssimos. Toda aquela história que envolve o grande negócio dos cursinhos pré-vestibulares e das vagas nas faculdades públicas.
Observamos, com isso, que nossos médicos são formados, em sua maioria, por uma classe particular de pessoas. Pessoas que possuem um bom dinheiro, estudam em escolas particulares requisitadas, tiveram as melhores oportunidades e viveram uma vida abastada sem muitos problemas financeiros. Esse modelo de vida classifica a grande classe média brasileira e são raros os médicos que não vieram desse grupo. Não são todos, é claro, mas se trata da grande maioria e eu prefiro, nesse momento que vivemos no Brasil, falar da regra e não da exceção.
Esse grupo de pessoas vive em um mundo a parte, digerem e espalham informações burras da mídia racista, classista e meticulosa, não entendem os problemas de classe dos menos favorecidos, ignoram grupos identitários (porque evidente que eles não fazem parte e nem precisam de nenhum deles), adoram colocar seus pontos de vista como se fossem os centrais em toda e qualquer discussão de minorias, acham cotas desnecessárias e injustas. Acham também que o bolsa família é esmola pra acomodar pobre e mais outras mil questões de senso comum – típicas de quem levanta uma opinião ignorante sem nunca estudar sobre o assunto.
Quem nunca encontrou um desses por aí, não é? Encontrei muitos na universidade, psicólogos e futuros psicólogos. E, pior, já até encontrei em postos de saúde – duvido que alguém que frequenta os postos de saúde não tenha tido o mesmo contato. Lembra daquele doutor(a) que sem te olhar no rosto demorou menos que 5 minutos para te atender e criar um “diagnóstico”? Pautando que para eles nós somos clientes e não pacientes, na maioria das vezes não se considera que se trata de uma pessoa ali precisando de atendimento.
Espera aí, pessoa? Vai saber, será que nos consideram pessoas? Porque a nossa medicina deixou de ser humanizada faz tempo, para muitos médicos não existem pessoas, existe um grande negócio e o Brasil fabrica médicos com esse porte na mesma intensidade que produz etanol. Eles estão em todos os lugares, essa é a classe que nos atende nos postos e não se tratam só de médicos. São eles também que estão por trás da grande mídia e são eles que ditam o que é certo e o que é errado.
Sim, isso é assustador, somos controlados pela grande classe média brasileira. No último dia 27 de agosto, vimos o que uma parte dessa corja de sábios ignorantes soube fazer: chamaram médicos cubanos de escravos e hostilizaram a sua chegada ao aeroporto de Fortaleza. Para eles, a regra foi quebrada, é ofensivo ver um médico que não possua o porte hegemônico que se fabrica constantemente, ou seja, o homem branco, classe média com “cara de médico”. Não é possível aceitar que o que veio de Cuba foram médicas com “cara de empregada doméstica”, como lidar com isso?
Mas o que é ter cara de empregada doméstica? O que é ter cara de médico? O Brasil tem tantos médicos brancos e empregadas negras que isso acaba entrando para um padrão – que, infelizmente, a classe média burra usa para classificar todos. Há sim uma injustiça acontecendo aí e isso é sim questão, não só de xenofobia, mas de racismo institucional. A regra foi quebrada, a classe médica ficou enfurecida, sabemos que eles não estão perdendo empregos, não é questão de direitos trabalhistas, é algo mais forte que isso e é cego quem não quer ver.
É triste ver essa realidade brasileira: há um tempo atrás a UFBA (Universidade Federal da Bahia) formou uma turma de médicos na qual só 3 ou 4 eram negros. Isso não faz sentido se o estado baiano abriga, de acordo com o IBGE, uma população de 70% de negros. A situação não muda em outros estados brasileiros, se você for morador de uma favela faça o teste por si mesmo: veja quantos vizinhos você conhece que estudam medicina, ou que tem pelo menos a esperança real de poder um dia se tornar médico.
Como afirmou Cintia Santos Cunha estudante brasileira, negra e mulher da Universidad de Ciencias Medicas de la Habana (Cuba): “No Capão Redondo, ninguém sonha em ser médico”. Pois é, essas situações se repetem porque eles dizem que esse conhecimento não é nosso, esse conhecimento dizem que é pra quem pode. Esse conhecimento é só da classe média.