“Não quero e nem preciso ser aceita por ninguém e muito menos por vocês. Mas quero e estou evidenciando aqui o quanto as nossas experiências são diferentes e o quanto elas deixaram marcas eternas dentro de mim que diariamente são relembradas (muitas vezes por vocês feministas brancas) através das múltiplas facetas do racismo e que eu preciso lidar com isso todos os dias e tu não. E isso deixa o machismo de uma forma extremamente mais pesada do que para ti, branca. Entenda, eu JAMAIS terei a opção de ser encaixada no padrão social, essa condição me foi negada no dia em que nasci com a cor da pele negra, diferente de ti.”
KyKy Rodrigues
O que temos em comum nos faz parte um dos outros, faz com que o reconhecimento seja mais fluido e essa relação faz parte do processo de desenvolvimento da nossa individualidade. Por incrível que pareça se enxergar no outro e fazer do outro um modelo pra formação de si mesmo contribui para fazer de nós o que somos. Não podemos nos colocar todos em um mesmo saco por sermos humanos, porque são inúmeras individualidades que nos separam e com elas percebemos que não somos todos iguais, que a sociedade, criada por nós mesmos, dita papéis, nos coloca em lugares políticos e não nos permite, por mais que queiramos, ficar fora desse jogo de poderes. Infelizmente o que vemos dentro dos movimentos sociais e fora deles é uma busca por igualdade que acaba colocando todos do mesmo lado, quando sim existem lados diferentes e eles nos limitam e silenciam vozes, principalmente quando nos referimos à negritude.
Passou agora o carnaval e ele é uma das melhores oportunidades para se analisar a dicotomia de papeis, ou seja, quem exerce privilégio sobre quem. Blocos de rua onde homens cisgêneros brancos se vestem de mulher e são vangloriados por isso, onde mulheres brancas se pintam de índia e de negra pra fazer mais sucesso nos bloquinhos, apropriação de cultura negra por todos os cantos e tudo isso é considerado comum, uma homenagem, nada de mais, parte da diversão. Maior exemplo é a foto que acompanha esse texto de uma menina branca usando turbante e charuto se denominando “mãe prix” se apropriando de uma cultura que não é dela, tirando sarro de uma religião de matriz negra que já é por séculos oprimida pelos brancos. Todo o ser produz algo sobre o outro, quando se trata de opressões muitas mulheres brancas cis acham que são imunes a isso, mas muito pelo contrário, elas produzem uma opressão de raça em cima das mulheres negras e isso é algo que é abafado há muito tempo por ser considerado uma questão “não grave” dentro do movimento feminista branco burguês. Quando nos referimos ao feminismo negro sempre que colocamos essa questão das nossas diferenças em pauta somos questionadas, duvidadas a maioria das vezes e caladas pela sororidade: somos todas irmãs! A frase é jogada no ar como se tivesse o poder de apagar todas as opressões, porque entre mulheres é tudo poesia. Mas não somos irmãs, porque não somos iguais. Enquanto o maior número de mulheres brancas ocupar as universidades, melhores posições no mercado de trabalho, o lugar de “patroa” e enquanto as mulheres negras trabalharem jornadas abusivas e desumanas cuidando dos filhos que não são seus, não somos todas iguais. Acredito que passou da hora do movimento feminista entender isso. Parece que martelamos na mesma tecla, mas a discussão ainda continua presente apenas entre nós mulheres negras, enquanto as mulheres brancas nos calam com a sororidade, com o amor livre, com o conto de fadas de que se nos unirmos podemos acabar com o machismo dos homens, mas o racismo é sempre deixado de canto como um problema secundário.
No racismo engenhoso brasileiro os padrões de beleza são construídos a partir de tons de pele, quanto mais clara a mulher mais bonita e aceitável ela é. Esse é o elefante branco dentro das relações por aqui, que muitos fingem não ver principalmente a mulher branca, especialmente por não querer reconhecer seu privilégio. Acompanhei no carnaval uma reportagem de um jornal na Bahia (terra que abriga 70% de população negra) uma foto com um grupo de mulheres brancas gaúchas com os dizeres: “musas do carnaval”. Turistas, brancas, bonitas. Vendo esse tipo de imagem eu não consigo ignorar o que ela tenta esconder: onde estão as mulheres negras? Esse vácuo, esse silêncio nos dizem que elas não existem ali, ou que nenhuma das mulheres que poderiam ser encontradas nesse carnaval seriam tão bonitas quanto essas mulheres brancas, ou melhor, nenhuma mulher baiana e negra seria tão bonita quanto uma mulher loira e gaúcha. Não dizem que o Sul é o estado com as mulheres mais bonitas do Brasil? Por que será? No Brasil esse padrão de beleza está muito longe de ser revertido. Porque essa relação de poder está presente não só em matérias de jornal, como também no protagonismo das novelas, nas rainhas brancas de bateria onde podemos ver essa falta de representatividade negra que aponta que não somos boas o bastante e que uma mulher branca vai sempre ser melhor em todos os quesitos. Essas questões o feminismo branco burguês nunca pensa em abordar porque isso não machuca e oprime as mulheres brancas tanto quanto nós.
Essas relações racistas cotidianas nos mostram muito, nos apontam que só sororidade não basta, que só ser “irmã” não adianta quando se usufrui de muitos privilégios e não se dá conta disso, não é só o homem que produz as opressões que lutamos diariamente.
Aconteceu com uma amiga negra recentemente, a qual cito no inicio do texto, ela estava curtindo um bloco de carnaval de rua quando uma menina branca leitora de Simone Beauvoir e “entendida de feminismo branco acadêmico” a abordou e perguntou: “por que tu te depila toda!? Pára de se torturar, não faz isso. Tu não precisa.” Como se para mulher negra parar de se depilar tivesse o mesmo peso que pra uma mulher branca. Enquanto elas param de se depilar nós tentamos sair na rua e não sermos taxadas como ridículas por causa do nosso cabelo, da cor da nossa pele, da exotificação dos nossos corpos. Eu particularmente já ouvi uma vez de uma feminista branca que parar de se depilar e usar sutiã tinha o mesmo peso pra elas que assumir os cabelos naturais pra nós, é tão estúpido que não dá vontade de argumentar. O empoderamento e o processo que uma mulher negra enfrenta para parar de alisar o cabelo, fazer um “big chop”, assumir suas raízes não tem nenhuma relação com a mulher branca parando de se depilar e abandonando o sutiã, são questões completamente diferentes, que são interseccionais entre racismo e machismo uma dupla opressão que nos atinge particularmente. O que as feministas brancas não entendem é que elas não podem criticar as mulheres negras com a mesma propriedade que criticam as brancas. Na verdade quando uma mulher branca critica uma mulher negra essa atitude é intensamente similar a um homem qualquer criticando uma mulher. Vem de um lugar completamente diferente de fala, que não tem ideia nem conhecimento nenhum do que é ser uma mulher negra e do que se é enfrentado por essa mulher todos os dias. Nos machuca ter que ficar lutando contra mulheres pra mostrar o quanto enfrentamos, pois elas deveriam nos acolher ao invés de nos ignorarem e nos oprimirem. Essa amiga negra ficou imensamente triste porque a indagação da feminista branca fez com que ela se lembrasse das opressões que sofria na infância e ainda confronta no dia-a-dia “por que não usa o cabelo assim?” “por que não tenta ser desse jeito e não daquele?” Como se a mulher negra tivesse sempre que se adequar ao que a sociedade pede, até dentro de lugares ditos feministas.
Já escrevi anteriormente sobre a necessidade do feminismo negro, por isso vou fechar esse texto exaltando a necessidade da exclusão do feminismo branco burguês. Já passamos da primeira onda feminista há muito tempo e ainda por cima vivemos em um país onde a população negra e parda é a maioria, onde brancos não sofrem opressão (porque não existe racismo inverso e branco não sofre opressão em lugar nenhum do mundo) então por que o feminismo ainda é branco no Brasil? Qual é a necessidade de ajudar mulheres brancas burguesas individualmente, por que não todas as mulheres? O feminismo não é somente sobre mulheres brancas, por isso quando você, mulher branca cis classe média, levantar uma questão sobre feminismo considere as mulheres negras, as mulheres trans, considere as índias, considere as outras mulheres que não nasceram com a sorte de estar em baixo da asa do padrão branco, cis e classe média de sociedade. Não adianta condenar o patriarcado e ter uma empregada negra limpando a sua cozinha e cuidando dos seus filhos ou silenciar a mulher negra que fala sobre suas vivencias, não existe mudança no movimento feminista sem autocrítica e já passou da hora de começarmos uma autocrítica forte sobre essa questão. Considerar o lugar de privilégio é o mais importante nessa luta por isso nada seria melhor no momento do que a exclusão do feminismo branco burguês de academia porque ele não serve pra nada, pelo contrário ele só exclui e silencia.
Imagem destacada: Reprodução Web.