Outro dia, durante uma aula que debatia as diferenças sobre o conhecimento científico, popular, filosófico e teológico, eu questionei o fato de o conhecimento científico não ser livre daquilo chamamos de senso comum. Esse questionamento soou ofensivo a quem ministrava aula, fui respondida com falas sobre pesquisas de discriminação racial feitas por brancos e uma afirmação de que a mulher branca sofre mais que a mulher negra no mercado de trabalho, afirmação feita com base em pesquisas sobre um mercado de trabalho em que o número de mulheres negras era insuficiente pra ser colocado no papel.
A mulher negra sabe o que é trabalho desde o início desse país, trabalho esse que sustenta seu lar, seus filhos, muitas vezes sem um companheiro que possa ajudá-las. Uma pesquisa que não tem mulheres negras é feita em qual ambiente profissional? Sobre qual mercado de trabalho estamos falando? Com certeza não é o mercado de trabalho frequentado pela maioria da população. E aí te pergunto, por que uma pesquisa dessas responderia o meu questionamento sobre a ciência ser contaminada por um senso comum branco?
O conhecimento científico é tido como correto e, às vezes, inquestionável, algo que está acima da vivência e do conhecimento popular, algo que é desenvolvido através de um pensamento racional e lógico. No entanto, é muito óbvio que pesquisas feitas nas áreas de sociologia, antropologia e ciência política são sim parte de uma visão embranquecida e eurocêntrica acerca do que é o mundo e a história que nos trouxe até os dias de hoje.
Dizer que o olhar das ciências sociais é contaminado por um olhar específico pode parecer absurdo, porém, se olharmos para aqueles e o quê nos ensinam dentro das universidades, veremos que existe uma perspectiva estritamente eurocêntrica.
O olhar sócio/antropológico e político tem um viés embranquecido, viés esse que exotifica, invisibiliza e silencia não só o indivíduo negro na sala de aula, mas também aquele que está fora das instâncias acadêmicas, aquele que vê sua realidade sendo retratada por alguém que não sabe nem nunca saberá realmente quão importante é racializar o ensino, as discussões, os estudos.
O que se vê dentro dos prédios das universidades mais renomadas do país são professores que utilizam literaturas estrangeiras (às vezes sem tradução para o português) a fim de nos ensinar a compreender a realidade nacional. Oras, onde estão as autoras brasileiras? E se mais da metade da população é negra – população essa que carregou e carrega o país nas costas –, onde estão as escritoras e escritores negras (os)?
Hoje, na maioria das universidades federais, 50% dos alunos são cotistas e podemos dizer sem sombra de dúvidas que não há representatividade positiva, no meio acadêmico, que nos contemple. Sem citar todas as dificuldades financeiras e psicológicas de se manter em um local destinado às elites o quadro de professores tem pouca ou nenhuma sensibilidade a nova realidade que atinge as universidades.
Uma mudança no olhar acadêmico é essencial, pois este não mais serve aos interesses apenas da elite. Mesmo que pareça devagar, o povo pobre e preto tem ingressado nesses locais. O quadro atual de professores, e suas falas em sala de aula, não mais representam a totalidade de alunos que hoje frequentam as instituições de ensino universitário.
Os professores, a universidade, a grade curricular, precisam ser alterados, precisam de um olhar real sobre a população que agora utiliza seus serviços. Queiram ou não, nós, pretos e pretas, pobres, estamos aqui e entramos pela porta da frente e sairemos por essa mesma porta, com os nossos diplomas que custam dias com fome, com sono, com gente aceitando empregos informais para se manter e ainda assim consegue lidar com um ensino excludente, que bate na nossa cara todos os dias. Nós chegamos aqui para questionar suas bases, seu olhar embranquecido e enriquecido financeiramente e, principalmente, seu discurso racista e preconceituoso. Se a racialização desse ambiente não se der pela vontade de vocês, se dará pelo nosso grito, pela nossa resistência.
Não voltaremos atrás, a marginalidade não mais será nosso destino, romperemos com o que a sociedade acredita ser nosso lugar, lugar esse de subalternidade. Ocuparemos seus espaços, da base até o topo. A briga por um ensino que não apenas nos forme, mas que nos contemple como indivíduo é mais uma das milhares brigas que nós, pretos e pretas, travamos todos os dias! Nós não desistiremos!
Imagem destacada: Mariane Gomes, ex-aluna do “Principia”. Créditos: Que nega é essa?