As eleições municipais 2020 chegaram e é com grande alegria e otimismo, mas não sem preocupação, que um levante de mulheres negras de diversos segmentos sociais colocou seus corpos à disposição de outros projetos de mundo, fazendo a disputa de poder pelo lado de dentro dos partidos.
A eleição de Kamala Harris é uma oportunidade de pensarmos esse cenário a partir de uma perspectiva global. Afinal, o que é o voto em uma mulher negra e como esse voto pode ou não fazer diferença?
A eleição de Kamala Harris é uma oportunidade de pensarmos esse cenário a partir de uma perspectiva global. Afinal, o que é o voto em uma mulher negra e como esse voto pode ou não fazer diferença? Sobretudo agora que estamos trabalhando por nossos direitos políticos, como o acesso aos fundos partidários, essas são perguntas fundamentais para entendermos quais serão os nossos próximos passos a partir daqui.
E não há nenhum romantismo envolvido, muito pelo contrário. Mais uma vez, somos nós que estamos trabalhando coletivamente para viabilizar e visibilizar candidaturas de mulheres negras e essa briga ainda não foi comprada por quem toma a decisão nos partidos. Ainda são bastante questionáveis os caminhos que faz dinheiro dos fundos partidários e o tempo de televisão, como tem insistido companheiras como Larissa Santiago.
Seria impossível alcançar a realidade dessas eleições sem falar sobre o ataque transfóbico contra Patrícia Borges que é produtora cultural, poetisa e ativista trans, integrante da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, coordenadora do Cursinho Popular Transformação, do Bazar das Poderosas e apresentadora e produtora do Transarau, em São Paulo.
A violência que aconteceu quando ela fazia panfletagem em apoio à candidatura da vereadora Erika Hilton, mulher negra e transvestigênere assim como Patrícia Borges, é essencial para entendermos as eleições municipais de 2020. Na hora de votar ou nos expressarmos politicamente, nunca se sabe o que pode acontecer. Sobretudo quando estamos falando de um voto em uma mulher negra que luta por propostas ou um programa considerado subversivo ou apatriota por determinados setores da população.
Quando a gente fala do voto negro em uma mulher negra, é exatamente isso que está em jogo. Assim como a escrevivência, as propostas políticas de uma mulher preta compromissada com a luta pela vida dos seus não pode ser pensada “para ninar os da casa-grande e, sim, para incomodá-los em seus sonos injustos.” Essa é a diferença entre colaborar com o projeto da branquitude ou ir muito além disso.
É é justamente por isso que a chamada grande imprensa virou os olhos na direção contrária para tudo mulheres negras fizeram nos últimos meses, concentrando sua atenção nas últimas semanas nas eleições norte-americanas. E para isso muitas vezes tiveram de se esforçar para ignorar um fato sem precedentes na história do império – oras, uma mulher negra ocupa a vice presidência da casa branca!
O cenário global aponta para um momento em que não será mais possível pensar política sem analisar a importância daquilo que alguns pejorativamente chamam de Identidade.
O cenário global aponta para um momento em que não será mais possível pensar política sem analisar a importância daquilo que alguns pejorativamente chamam de Identidade. E por isso, quem vota em quem foi objeto de muita análise por parte de comentaristas brancos, esses que não “opinam” mas “analisam” E o fiel da balança temos sido nós, os outros – negros, indígenas, latinos, pobres, periféricos, lbts, anticapitalistas, dissidentes, subversivos. E as maricas, obviamente.
Sabemos que nunca foi sobre Harris, embora sua presença nos pareça ter sido fundamental para humanizar a chapa e sim, garantir a vitória numa disputa pragmática. Se tratava muito mais de ter ao menos algum espaço de respiração na sociedade norte americana e por consequências eventuais, em muitos países como o Brasil, que já tem sido afetado pelo resultado das urnas.
Sem surpresas, uma das análises mais curiosas foi a de Glenn Greenwald explicando que a percepção da esquerda brasileira estava completamente errada sobre Biden. Não sabemos de que esquerda ele falava, afinal sem nós não existe esquerda. Certamente não compreendeu como as falas de muitas companheiras brasileiras se alinharam ao fio construído por Angela Davis e traduzido do original por Joice Berth:
Não estou dizendo que kamala Harris não tem pontos problemáticos na sua trajetória. Não podemos esquecer que ela não se opôs à pena de morte. Assim como não podemos esquecer que alguns dos seus reais problemas estão associados à sua carreira como promotora. Mas eu penso que é uma abordagem feminista estar apta a trabalhar contradições e estar apta a conviver com elas. E então, nesse contexto, posso dizer que estou muito animada.
Eu penso que o voto se tornou muito mais palatável, claro. Porque eu digo a vocês que mesmo antes eu sabia que nós teríamos de engajar a campanha de Biden, e ele não é o melhor candidato. Mas nós temos de nos livrar da pessoa que ocupa o lugar nesse momento. Aquele cujo nome não irei mencionar. E eu penso que é uma questão de quem nós podemos pressionar.
Estamos falando de um cenário limite e isso explica muita coisa, era tipo o episódio final de uma série em que se tem apenas 10 segundos para salvar o universo. Agora não é diferente, batemos a casa dos 165 mil mortos, o que lamentamos profundamente. Ao mesmo tempo, alcançamos recordes de inflação. A gente começa a temer o fato de que talvez não dê mais para comprar à tarde o que se compraria de manhã. Já falamos aqui do preço do arroz.
Para a grande maioria de nossas famílias, esse será mais um final de ano que não se trata de não ter dinheiro para pagar o I P V A. São M I L H Õ E S de pessoas sem emprego, sem ter grana para buscar emprego, sem moradia, sem saneamento, sem saúde, sem qualquer perspectiva de futuro. Como bem disse Mônica Oliveira para as Blogueiras Negras – já estávamos cientes da crise e por isso, nós mulheres negras temos feito propostas.
O chamado novo normal dessa pandemia é o nosso cenário histórico. E para isso não nos basta a eleição de uma mulher negra, precisamos de mulheres que ao chegar lá não vão negociar nossas vidas.
O chamado novo normal dessa pandemia é o nosso cenário histórico. E para isso não nos basta a eleição de uma mulher negra, precisamos de mulheres que ao chegar lá não vão negociar nossas vidas. O voto só será preto, preto, pretinho quando protagonizado por nós. Nesse sentido, ainda que benvinda, a eleição de Harris tem muito a dizer e o mais importante, fazer.
Então de que esquerda e para qual esquerda fala Glenn Greenwald? Não para nós mulheres negras, especialmente neste ano em que completamos 5 anos da Marcha de Mulheres Negras em Brasília. Nós que estamos cientes e ciosas de que não adianta ser um corpo negro dentro dos partidos, é preciso assumir um profundo compromisso contra o racismo e pelo Bem Viver, como expressa Rosane Borges.
Mais do que simples reedição de questões reiteradas, a Marcha das Mulheres Negras será um marco para reinaugurarmos, à luz do repertório já acumulado pelas nossas ancestrais, um outro modo de vida, onde a dignidade, a soberania dos direitos, condições materiais aceitáveis, a educação, o lazer, e o bem-estar configurem padrões de existência para aquelas e aqueles vêm experimentando, mesmo com o avanço das políticas públicas, o direito à vida de modo deficitário e incompleto. Reajamos ao racismo e reivindiquemos o Bem Viver!
Sim Glenn, nós estamos cientes. E por isso estamos, apesar da alegria pela vitória de Biden, estamos na realidade discutindo quais serão os próximos passos de Harris. Sua eleição oferece a oportunidade de pensarmos com companheiras de todo o mundo quem são as mulheres que irão nos representar. E não se trata de qualquer indisposição em abordar as contradições que o processo encerra, muito pelo contrário.
É justamente sobre as cidades que se reafirmam como máquinas de matar sonhos e corpos. É sobre pegar o busão lotado em meio de uma pandemia para trabalhar na casa das sinhazinhas. Sobre buscar saúde e não encontrar no estado este direito . É sobre a reedição de projetos abolicionistas pensados para nos matar. E para resolver isso, não tem negociação, não tem passinho à direita. É preciso ter projetos e vontades negras.
Negritamos aqui nosso compromisso, de mídia negra que caminha ao lado do movimento de mulheres negras, em garantir a visibilidade e a abertura para candidaturas negras com propostas à esquerda. Não acreditamos que podemos, num momento como esse, ser incoerente com o projeto político de nossas ancestrais. Reforçamos que as candidaturas militarizadas, racistas, sexistas e genocidas não representam o nosso povo.
Nós, as mulheres negras, continuamos o caminho das nossas anteriores e, no compromisso com a uma comunicação que luta contra o racismo, abrimos espaço, vez e voz para as nossas aliadas. A democracia que queremos é a democracia que nós fazemos. E isso não apenas é parte de nossas vidas. Disso depende nossas vidas.