Se tem algo que me da profundo tesão, é conhecer novas universidades.
Parece engraçado, mas chega a ser um vício… Conhecer novas universidades, pra mim, é um misto de curiosidade, mistério, tesão. Os espaços de construção do conhecimento sempre me despertaram o sonho e a esperança, vontade de algo novo. Mas as universidades, para além disso, tem algo de assustador.
Quando era criança, ficava atônita ao entrar em alguma escola diferente. Quando passava em frente, queria saber tudo sobre aquela escola. Chegava a sonhar com elas. Um costume talvez estranho.
Lembro da primeira vez que entrei em uma universidade…. na Feevale, em Novo Hamburgo. Eu estava na oitava serie, e queria fazer meu Ensino Médio na escola de aplicação de lá… O que não foi possível pois eu não podia pagar pelo curso, visto que era uma escola privada. Mais tarde, fui atendida durante alguns meses no setor de fisioterapia, nas piscinas da Feevale. Foi um tempo bom, eu me sentia realmente importante por passar livremente por aquelas portas.
Depois, voltei à essa universidade, no terceiro ano do Ensino Médio, para fazer um vestibular simulado e depois no ano seguinte, o ENEM. Foi a primeira vez que senti a ansiedade em realizar uma prova importante: mas eu sabia que as provas que viriam pela frente, determinariam meu futuro.
Quando resolvi prestar vestibular, me inscrevi na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), na cidade vizinha a que eu morava. Eu considerava o curso de historia dessa universidade melhor, devido a sua estrutura (sobretudo por ter a maior biblioteca da AL) e pela recomendação dos meus professores.
Não cogitei tentar a federal (que ficava em Porto Alegre, há uns 40km de onde eu morava). Achei que seria muito difícil passar no vestibular, sempre ouvi que a universidade seria diurna, que não havia como escolher turnos para as aulas, ocasionando que eu não teria condições de trabalhar, teria possivelmente que mudar de cidade e minha família não tinha como me custear sem trabalhar, visto que eu já estava no mercado de trabalho desde o colégio.
O pior: estava entrando em debate as tais das cotas. Fiquei revoltada: porque eu iria estudar em uma universidade que no vestibular diz que sou inferior, que eu preciso de cotas para ingressar… Eu era severamente contas as cotas!
Nunca uma “boa” aluna, mas sempre me virei bem, tinha boas notas e raramente me dedicava a estudar fora da escola, gostava de literatura: lia muito, mas não ficava horas estudando como minhas colegas.
Lembro que uma pessoa disse que eu deveria tentar. Que a UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) não era algo inatingível. Mas preferi ouvir todas as outras que disseram que não valia à pena, afinal, eu não tinha chance mesmo, e na universidade privada, estudando a noite, eu poderia seguir trabalhando de dia para pagar pela minha formação, nada mais justo, certo? Errado!
Durante mais de três séculos, nesse país o meu povo ficou do lado de fora do ensino regular, assim como ficou à margem do acesso a emprego, saúde de qualidade e a garantia doa direitos básicos para sobrevivência.
Mas meu povo resistiu! E através do Movimento Negro organizado, vem lutando pelo direito ao acesso a educação, enquanto massificamos as taxas de evasão escolar, de mortalidade infantil e materna, além da morte precoce dos nossos meninos, que mortos ou encarcerados acabam desumanizados, deixando de ser gente, tornando-se apenas estatísticas.
Sem me dar conta disso tudo, pisei pela primeira vez na Unisinos no dia do vestibular. Ao lado da minha melhor amiga percebemos que aquele era o primeiro dia do resto das nossas vidas. Aquela era uma das poucas certezas que tinhas, que se confirmou. O medo, a incerteza, a curiosidade e a esperança tomavam conta do meu ser, e decidi que a partir daquele dia, a universidade me pertencia.
Que felicidade, passei no vestibular! Mas a universidade é particular! Por quatro longos anos fiz o possível e o impossível para me formar o quanto antes: comecei matriculada em poucas cadeiras, financiei e fiz muitas, cancelei o financiamento, fui para a iniciação científica, arrumei trabalho dentro da universidade e finalmente, me formei: historiadora. A filha da empregada com o calderista, lá do fundo da vila, a primeira da família com ensino superior.
Ai alguém me disse: tu estava certa, se tu mulher, negra, pobre, trabalhadora, da vila conseguiu, cotas pra quê? Respondo, cotas sim, porque sou exceção, lamentavelmente, não sou a regra.
Quando em um curso de 300 estudantes, menos de cinco deles são negros não somos regra, somos exceção! Não se trata de questionar a capacidade alheia, como pensei, mas de criar oportunidades que nos motivem ao ingresso na universidade, que por ser pública é nosso direito. Não precisamos trabalhar para sustentar empresários do setor da educação, mas gozar do direito ao acesso ao ensino público, pelo qual pagamos diariamente e, forma de impostos, e ao mesmo tempo, menos se 5% do orçamento da União são dedicados para isso.
Hoje, já no final do mestrado em Ciências Sociais, já atuando no Ensino Superior, militante e consciente do meu papel na sociedade, e da importância que o a minha titulação têm para a população negra entendo o tanto que perdi acreditando no discurso do senso comum de que a universidade pública não era lugar pra mim.
Na noite da minha formatura na graduação, fui a oradora da turma de 2011/02. Naquela oportunidade, agradeci os meus ancestrais, pois hoje, sempre que entro em uma universidade, levou meu povo comigo.
Mas cada vez que entrei em qualquer universidade, pública ou privada, mas sobretudo nas federais, lembrei do meu povo analfabeto, pobre e marginalizado, que entra junto comigo sempre que eu piso em uma grande instituição de ensino. Por isso, entre tantos sentimentos, uma certeza: assim como os que vieram antes de mim, preciso abrir caminho para os que virão.
Mesmo que eu não tenha sido cotista, as cotas são um direito e a garantia de que nosso povo vai ocupar e colorir a universidade.