Da varanda do prédio da Procuradoria Geral de Justiça do Estado de Pernambuco, na Rua do Sol, às margens do Capibaribe, defronte à Rua da Aurora, tem-se uma vista estupenda da skyline do Recife, partindo em 180 graus de Boa Viagem até Olinda (foi como admirei a paisagem, em diferentes momentos da tarde e da noite).
Eu acabara de palestrar sobre relações étnico-raciais e gestão da diversidade, a convite do atuante Grupo de Trabalho sobre Discriminação Racial (GT Racismo) do Ministério Público de Pernambuco – MPPE, por ocasião das comemorações da Semana do MPPE 2014, que abordou o tema “cultura da paz”.
Durante o coffee break, realizado ante àquela vívida paisagem urbana, um dos participantes do evento, muito gentilmente, perguntou-me, após se referir aos recentes tumultos nos Estados Unidos, contra o assassinato de jovens negros por policiais:
— Por que os negros daqui não se revoltam?
Certamente essa é uma pergunta desafiadora, e honesta, principalmente para qualquer pessoa que estude ou reflita minimamente sobre a desigualdade racial no Brasil e suas expressões repressivas, além de ser sutilmente embaraçosa para os ativistas.
Felizmente, muito antes que ele me perguntasse, como pessoa negra, eu já refletia sobre essa situação (e muitas outras pessoas também), em que um determinado episódio catalisa a violência física contra as elites brancas, derivada do intenso ódio determinado pela percepção de injustiça e a sensação de estar sendo inferiorizada(o), que se vivencia cotidianamente quando se faz parte de um grupo sócio-historicamente discriminado.
Foi curioso que a pergunta tenha sido feita a mim explicitamente, pela primeira vez, no Recife, em função de experiências pessoais, e não apenas por conhecimento.
Quando eu era criança, lá pelo fim dos anos 80, meus pais me levaram à cidade, para passar um período breve das férias. As minhas lembranças mais vívidas foram quando comemos num restaurante do Recife Antigo, um grupo enorme de crianças (negras) se apertou do lado de fora da vitrine para nos espiar comendo; e quando fomos visitar alguém na periferia e avistei casebres pendurados em barrancos à margem de esgotos a céu aberto, só havia pessoas negras nessa localidade.
A revolta negra sempre existiu, do primeiro navio negreiro aos canaviais, das casas-grandes aos quilombos, ensinaram-nos lumiares como Clóvis Moura e Abdias do Nascimento.
Qualquer cidadão minimamente informado sabe que ocorrem microrrebeliões aqui e ali em comunidades carentes em todo o Brasil, e elas são negras, por razões que vão desde a falta de serviços públicos ao assassinato de moradores (geralmente pela polícia militar); que a implantação de políticas afirmativas para a população negra nas Instituições de Ensino Superior e no mercado de trabalho, ainda insuficiente, foi antecedida e acompanhada por caminhadas e manifestações variadas a seu favor; que os chamados rolezinhos, muitos proibidos pela Justiça, foram e são reações da juventude negra de periferia frente ao desprezo dos comércios/espaços de lazer; sabe também, apesar da divulgação quase nula pelos meios de comunicação mainstream, que tivemos marchas contra o extermínio da juventude negra este ano, inspiradas em uma campanha, iniciada em Salvador, a “Reaja ou será morto(a)”, que completa mais de uma década.
Exemplos da revolta negra não faltam, expliquei-lhe, mas é fato que, para o nível alarmante de violações da identidade e dos direitos da população negra no Brasil, esperar-se-ia que elas fossem massivas, compostas por multidões mais iradas e menos concentradas.
Racismo expresso na pobreza; apartação simbólica e espacial dos bens sociais. A população negra brasileira é isolada em campos de concentração informais, distantes dos centros comerciais e onde moram os privilegiados, onde só chegam, após uma jornada extenuante e mal paga de trabalho, por meio de transporte público restrito e péssima qualidade.
O status quo brasileiro, seus sistema econômico e político, ao longo do século XX criou estratégias bem sucedidas para controlar a permanente revolta dos negros, pautada pelos princípios históricos do assassinato, da subalternização, da agressão física e da censura.
Eu falava isso para ele e apontava para as ruas do Recife, lembrando o cansaço da “mão-de-obra” (termo horroroso e superado) negra, que se deslocava àquela hora para as suas casas, enquanto debatíamos as razões de sua revolta entre petiscos e refrescos.
A meu ver, expus-lhe, a revolta negra no Brasil só poderá se tornar um evento estrondosamente efetivo, em termos de visibilidade e impacto, quando tivermos mais oportunidades econômicas para que a mobilização social se coloque como uma possibilidade para um número maior de pessoas negras; quando mais formadores de opinião forem convencidos a conhecer in loco a difícil vida nas favelas, cortiços e outros aglomerados depreciados onde a maioria da população negra luta para sobreviver; e, lamento afirmar isso, quando as milhares de denúncias feitas pelos Movimentos Negros e as centenas de dados coletados pelos pesquisadores da realidade étnico-racial se expressarem na forma de tumultos que realmente chamem a atenção da sociedade brasileira.
Já começamos a revolta. Mas deixe eles descobrirem sozinhos.
Imagem destacada: Manifestação Ferguson, reprodução web.