“Saravá jongueiro velho
Que veio pra ensinar
Que Deus dê a proteção pro jongueiro novo
pro Jongo não se acabar”
(Jefinho – Jongo de Tamandaré)
Todas as vezes que eu envio um texto para ser publicado, me pedem que eu envie também uma “mini bio”. É comum em “rodas de conversa” ou palestras que se iniciem as falas com a “apresentação pessoal”. O intuito é basicamente dizer “Quem é você?”. As pessoas têm necessidade de perguntar “Quem é você?”. E, há um tempo, eu mudei minha apresentação e sempre que me perguntam isso eu começo falando (ou escrevendo) a mesma coisa:
– Eu sou Filha da Dona Rita, Mãe do Adriano…
Normalmente as pessoas se espantam, ficam com aquele jeito de “ué?”. Fazem aquelas caras de “hã?”, “Mas e as suas formações?”, “E as titulações?”, “Quem é Dona Rita?”, “Que diferença isso faz?”.
Bom, para mim faz toda a diferença!
Saber de onde eu vim e para onde eu vou é muito importante na minha vida. Principalmente, porque eu sou uma mulher negra. E se reconhecer como Mulher Negra em Diáspora faz muita diferença na minha história e como me posiciono no mundo.
Fazem exatamente 130 anos que a escravidão foi abolida “oficialmente” no Brasil. Eu tenho 30 anos, a Dona Rita 64, meu avô teria 88 anos se estivesse vivo, ou seja (em uma conta bem simples), meus tataravôs foram escravizados.
Ser escravizado significa ter sua história roubada, suas raízes arrancadas, seus espaços invadidos, suas dores invalidadas e seus destinos escolhidos por outra pessoa. É tirar o direito mínimo de você se reconhecer, conhecer sua história.
E existe prática mais invasiva do que essa que determina que para “ser alguém” reconhecido precisamos nos apresentar partindo do que está escrito em um pedaço de papel?
A prática de ter um papel dizendo se você é propriedade de alguém; Se você é alforriado ou não; Se você é recomendado pelos seus donos ou não, foi uma prática muito comum durante o período de escravidão. Milhares de negros sonharam e morreram com vontade de se ter um pedaço de papel. Esse hábito naturalizado é herança do período que ter um pedaço de papel fazia toda a diferença na vida de pessoas negras e ainda é comum até hoje. Eu não preciso apresentar um pedaço de papel para dizer quem eu sou. E não é partindo dele que construirei minhas narrativas.
Reconheço a importância e o peso de se ter títulos e “papéis” na sociedade atual, mas quando estou entre os meus (falando ou escrevendo), eu quero ter, antes de tudo, a minha ancestralidade como ponto de partida. Eu quero que os laços digam mais que os papéis. E isso também é uma forma de Respeito.
Respeito aos mais velhos. Respeito aos caminhos trilhados, às dores sofridas. Nossa militância só se torna realmente eficaz, quando ela começa e é praticada dentro de casa. É na FAMÍLIA que vamos exercer o que falamos na teoria.
Em África, os mais velhos são tidos como sábios. E é essa sabedoria que muitas vezes vai decidir de coisas simples do cotidiano à decisões mais complicadas. Os mais velhos são requisitados sempre. E nossa construção também acontece quando ouvimos dos mais velhos as histórias da família, as nossas origens, os ensinamentos.
Precisamos enxergar com zelo, atenção e cuidado quem nos antecede e quem nos sucede neste mundo. Isso dirá muito mais sobre você do que os pedaços de papéis. São estas práticas e as construções nos espaços negros que determinarão muito de nossas lutas, de nossas mobilizações.
Em tempos onde pouco sabemos da nossa Ancestralidade, onde pouco entendemos, respeitamos e escutamos os nossos mais velhos, é importante dizer que a Revolução começa do micro para o macro. É dentro de você, dentro da sua casa para depois alcançar diversos espaços.
Não carregarei os “papéis” da minha mãe, assim como o Adriano não carregará os meus. Mas o nome, a história, alguns hábitos, algumas coisas se manterão. E continuidade é isso. É respeitar de onde viemos, para construir para onde vamos.