Fui contemplada com o desafio de escrever sobre xs negrxs e a saúde. Digo desafiada porque, sendo mulher, negra, e psicóloga na área da saúde, são muitos os atravessamentos que tornam essa questão não somente sensível, mas visceral na minha vida, de modo que a discussão está tanto para o campo racional e da externalidade como para o emocional e da subjetividade.
Dizer sobre os índices de saúde e dados epidemiológicos, e sobre que posição o negro – em especial a mulher preta – ocupa nesse espaço seria redundância. Então, não sabeis vós que morremos mais, nossos filhos também, nossas casas são as menos cobertas por saneamento? Sabeis agora.
Mas isso não é o mais importante a ser tratado aqui, porque saúde não se faz com números, ou não só com eles. Aqui queria falar do contato entre sujeito paciente e sujeito trabalhador da saúde. É sobre a importância desse encontro e em como ele tem se dado, sobre esse contato que é direto, íntimo, revelador, cujo acolhimento e aceitação deveriam ser premissa, cujo olhar para o outro deveria ser empático, cujo mote deveria ser alteridade. E será que isso acontece mesmo?
A saúde, em nosso pais, tem se constituído como direito universal. Ao contrário da maioria dos países, aqui esse direito está mais assegurado que o da educação, a necessidade de sua universalização tem sido inquestionável. A questão que se coloca é: em que medida a saúde, como bem imaterial, está sendo de fato partilhada, quando não há o entendimento em nossa população do negro como cidadão, sujeito de direitos? Falamos de saúde, mas saúde pra quem? Quem é que é cidadão num país racista?
E aí começa a se estabelecer mais um ponto que enegrece o debate velho: saúde e racismo não só não combinam como são antagônicos. Como é que se pode promover cuidado e favorecer a saúde do negro quando ele chega passando mal da diabetes e se interpreta como preguiça? Como é que se barra uma intervenção medicamentosa a uma criança preta agitada – e só! – quando já se tem a ideia na cabeça de que ela é, num futuro próximo, um delinquente? Como garantir pílula do dia seguinte pra adolescente preta quando se considera que ela deve ser punida por ser promiscua? Como trabalhar limites e afetos com o adolescente negro quando você imagina de antemão que ele seja agressivo e perigoso? Como tratar a diabetes da vó preta quando não se acredita que ela se esforça suficientemente? Como fazer um curativo no negro que se acidentou quando você tem nojo de ser contaminado sabe-se lá pelo quê? Como garantir o direito reprodutivo e a escolha à maternidade da mãe preta quando você se sente seguro com o extermínio de seu povo? Para que se apressar num diagnóstico de câncer se não há problema que essa pessoa morra? (E só pra constar, essa passei com minha avó).
E, por último: como garantir o direito a vida – pois é disso que se trata saúde! – de todos esses sujeitos quando o racismo, consciente ou não, opera dizendo que eles nem deviam estar ali, nem deviam existir, não tem esse direito? E não nos esqueçamos de quem é esse trabalhador: majoritariamente branco. Sim, isso diz o suficiente. E não seria precipitação dizer que, em termos gerais, está estabelecida uma dicotomia – mais que isso, um embate! – entre o branco de classes medias altas do centro e o negro pobre periférico.
Vejam que não se trata de reduzir a complexidade dos fenômenos da saúde a relação paciente – trabalhador, muito menos de culpabilizar este último pelas mazelas do povo negro. Trata-se de entender que, quando falamos da saúde do negro, não há escapatória ou alternativa: nem este último recurso nos está assegurado.
Temos um macrossistema racista que nos adoece e, nos microssistemas de atenção a saúde, onde deveríamos ser cuidados, o que os olhares nos reservam? Mais adoecimento. É triste se dar conta que, até no campo em que todos foram incluídos, estamos excluídos e apartados.
Não sou ingênua, sei que a saúde, em suas múltiplas expressões, não é diferente de todas as esferas sociais. Nela o racismo também aparece, de forma velada ou explicita, mas aparece. O que se trata aqui é de resgatar nossa dimensão humana, de afirmar nossa existência, nossa existência como sujeitos de direitos, como todxs somos.
A esse ponto, deve ficar enegrecido é que essa é fala aos negrxs. É àqueles que não se furtam do embate. É pra todxs que se recusaram a medicar seus filhos, por acreditar que são saudáveis a apostarem no seu futuro. A todxs as avós que não aceitaram o rótulo de família desestruturada por saberem da nossa ancestralidade matriarcal, presente até hoje, e que lindo isso! É pra todos as mulheres que resistiram a contracepção genocida. É pra todos os garotos que se recusaram a raspar o cabelo em prol do legado da higiene . Eis nosso direito a (r)existência, é com ele que se faz saúde!
É também a todxs os negrxs profissionais da saúde que entendem que estamos em disputa e não há outro caminho, que ao lutar pela saúde é também necessário lutar pelo negro; para todxs que sabem que nossas armas de luta foram furtadas, mas nossa resistência sempre foi maior. Que puderam ocupar desse espaço de poder e acabam por fazer o nosso emergir, dentre tantas amarras.
É uma fala de redenção pra mim mesma que tantas vezes, como profissional da saúde, não consegui, por diversos motivos, atuar nesse fronte de forma mais aguerrida. Que se inicie aqui um novo ciclo em que eu e todxs nós, esclarecidos e empoderados acerca de nossa papel e função, sigamos e lutemos pela saúde do nosso povo, pela legitimação dos nossos direitos, pela defesa de nossas vidas e (r)existências!
Imagem de destaque – reprodução web.