Há exatos 12 [doze] dias, recebi no email pessoal um pedido de entrevista. O título apontava para um assunto que muito me interessa, já que sou das comunicação social – precisamente, publicitária. Ele se referia à “Pauta Representatividade da mulher negra nas propagandas” e, como era um pedido sincero e interessante que partia de uma jornalista, achei honesto compartilhar com as minhas sobre conceder ou não a tal entrevista.
Juntas decidimos que sim e assim as respostas foram enviadas. Conhecendo os processos de editoria, apuração da informação e esquematização da reportagem, pensamos cautelosamente no que responder e confiamos completamente no referido veículo. Acontece que permeava a matéria um estudo da Agência Heads trazendo dados contundentes sobre a situação das mulheres nas propagandas.
Segundo esta pesquisa:
“Entre o primeiro e o segundo levantamento, houve uma piora significativa no indicador de comerciais que contribuem para a equidade de gênero: 58% ante 45% não contribuem para equidade; 28% ante 36% são indefinidos; e apenas 14% ante 19% contribuem para igualdade entre os sexos.
No recorte por segmento, as categorias que mais estereotipam continuam as mesmas: bebidas alcóolicas (97% em janeiro de 2016 ante 60% em julho de 2015) e produtos de beleza/cuidados pessoais (91% ante 39%). No segmento de bebidas alcoólicas, 94% do estereótipo se dá por meio de hiperssexualização e 77% por padrão de beleza. No setor de produtos de beleza/cuidados pessoais, a estereotipização ocorre, principalmente, por padrão de comportamento (75%) e padrão de beleza (95)”.
Ora, sabemos que a imagem (ou a não-imagem) da mulher, sobretudo das mulheres negras, nas propagandas tem sido questionada, debatida, estudada. Mas quanto demora para que as mudanças sejam significativas? Quanto ainda precisaremos escrever e criar alternativas? Na semana passada, a Dove (que vem fazendo isso há um bom tempo) lançou outra proposta sobre beleza e incluiu imagens tão incríveis quanto as que ela havia fazendo, quando lançou a Campanha pela Real Beleza em 2004! Depois de 12 [doze] anos, estamos chegando lá – ironia -, mas ainda falta muito.
E foi pensando exatamente nisso que, não mais que de repente, nos pusemos a responder àquela revista. E qual foi a surpresa quando recebemos o link da matéria publicada? As respostas vinham diluídas como que meras “opiniões pessoais”, citações soltas. É claro que para nós, mulheres negras, nossas opiniões, vivências e lugares de fala importam e justamente por isso, por compreender que valorizar dados em detrimento das respostas que avaliamos serem igualmente importantes e que torna a nos colocar num outro lugar, escolhemos tomar a atitude de agora.
Reconhecendo o potencial do que criamos e enfatizando que nossa experiência e estudos são complementares a dados e pesquisas, reproduzimos na íntegra a entrevista concedida a Revista Claudia Online.
Qual foi a propaganda mais misógina e racista que você viu? (Se você não quiser que eu divulgue a marca, tudo bem).
Fica difícil mencionar uma porque são tantas. Mas a última propaganda da Itaipava era bastante sexista e continua, como as marcas de cerveja, a explorar o corpo das mulheres para “estimular venda”.
Você acredita que o posicionamento do CONAR tem sido satisfatório frente aos comerciais machistas e racistas?
O CONAR é um órgão que, assim como tantos órgãos reguladores, precisa ser acionado para funcionar. Como a sua composição é dita mista (mas grande parte são Associações de Anunciantes, Agências e Fornecedores) muita coisa passa, muita propaganda machista, racista e sexista. Além disso, a comunidade brasileira ainda não se acostumou a reclamar do que vê nos intervalos das novelas; como entretenimento, a propaganda passa quase que imperceptível aos olhos cansados dos espectadores. Alguma coisa já mudou, mas precisamos melhorar e cobrar mais desse órgão em específico e, como publicitária, acredito que boicotar marcas que persistem em práticas racistas e sexistas em sua comunicação é um bom caminho.
Você acredita que a representação das mulheres negras nas propagandas seja um reflexo do racismo e da misoginia que elas enfrentam diariamente? Como isso se manifesta?
A ausência da mulher negra na propaganda é o “reflexo” do racismo. Ainda permanece na cabeça do cliente e dos criativos (maioria homens brancos cisgênero) a ideia de que determinadas identidades não representam lucratividade, não vendem.
Como as marcas atrelam significantes vários as suas histórias – desde padrões comportamentais a cores, estilos de vida, identidades e afins – a prática sempre foi optar pelo padrão, do lugar comum, excluindo da comunicação sobretudo da propaganda outros significantes. Por exemplo, as marcas de sabão em pó SEMPRE fizeram propagandas com mulheres brancas lavando roupa (padrão), E porque nunca ninguém experimentou colocar um homem no lugar? Não é criativo? Não vende? Ou repetir papéis de gênero é mais fácil? Vende mais?
Falando de nós, mulheres negras, podemos contar nos dedos propagandas de xampu que mostram nossos cabelos, nossos fios e alternativas para tratá-los. Como pode isso num país de metade da população é afrodescendente?
Garanto que essas respostas, ninguém tem ou não quer dar.
Dados do último censo realizado pelo IBGE divulgaram que somos maioria entre os habitantes do país, representando 51% da população nacional. Você acredita que a postura das empresas responsáveis pelas propagandas subestime o poder de consumo do público feminino?
Muito! Empresas, agências, fornecedores todos subestimam nosso poder de formadoras de opinião, de mobilizadoras e sobretudo de compra. Um caso emblemático é o das companhias de cerveja. Esses dias, sentada no bar com as amigas a gente se perguntava exatamente porque as propagandas não mudam, com todo avanço, com tantos novos discursos. Aí foi que nos caiu a ficha: porque nós continuamos bebendo! Nós continuamos comprando, participando dos números de lucro das nacionais e internacionais empresas de cerveja. No dia em que resolvermos boicotar por causa dos discursos, dos rótulos (devassa, por exemplo, é uma das quais eu boicoto) e das propagandas, eles sentirão nos cofres e quem sabe serão forçados a repensar.
A que você atribui o aumento significativo de comerciais que reforçam esteriótipos de gênero? E na sua opinião, quais seriam as medidas a serem tomadas para que o número de propagandas empoderadoras supere o das machistas?
Acredito que a primeira coisa é a falta de mulheres (negras, trans, lésbicas) nos altos cargos e nos lugares de decisão. Porque não basta estar na sala de criação, não basta duplar com a melhor diretora de arte e fazer o melhor trabalho porque na hora da aprovação, o diretor (machista) de criação vai boicotar seu trabalho e argumentar que “você está deixando sua ideologia minar seu trabalho”. Sim, isso aconteceu!
Então, a primeira coisa é brigar por acesso nos espaços de decisão, estar nas diretorias de atendimento, ser as head, as gerentes de marketing e estar onde chegam as ideias para serem aprovadas. Depois, bem depois é educar esses profissionais e mostrar com pesquisas, dados e argumentos que já passou da hora de enxergar outras possibilidades, outros discursos. De perceber que mulheres, negros, LGBTT’s são formadores de opinião, são os que estão sendo ouvidos nas redes sociais, nos aplicativos de vídeo instantâneo e também tem poder de compra. Falta ter acesso a pesquisas como essa acima citada e colocar em prática um novo jeito de comunicar.
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Tornamos a dizer que, a querela do ocupar espaços e criarmos o nosso próprio passa por isso aqui: pela consciência de que nem tudo dará conta do que queremos e podemos falar; de como escolhemos contar e registrar nossas histórias. Tão importante quanto decidir sobre que espaços ocupar, é ter a liberdade do que fazer quando algo não nos agrada, quando a necessidade de mostrar mais extrapola as determinâncias do outro.
De novo e mais uma vez, do nosso lugar de resistência, seguimos!