Originalmente publicado no facebook da autora e no blog do Coletivo Audre Lorde.
“É sempre muito delicado quando o assunto chega na afetividade, na forma do relacionar-se com a outra. Isto posto em debate, por mais que não se diga nomes, nos sentimos atingidas e inclinadas a responder de acordo com o que vivenciamos. E é aí que individual e coletivo se misturam como se nunca tivessem se separado, num emaranhado de exemplos e estórias sem fim. Não raro, acabamos fazendo um discurso que soa mais como imposição do que a defesa de um ponto de vista porque sabe-se lá as Deusas onde perdemos o fio da meada, a capacidade de ouvir e respeitar; argumenta-se tanto e com tamanha voracidade afim de que a outra pessoa acate aquilo, sem pestanejar. E essa linha bamba do “aquilo que serve pra mim, não serve pra você” fica por um fio quando falamos de relações inter-raciais, ou amor afro centrado porque justamente enfia o dedo na ferida: a solidão da mulher negra.
Se por um lado temos a união e aliança daquelas que só desejam se relacionar, exclusivamente, com outras mulheres negras, lá na outra ponta desse iceberg, temos uma mulher negra que não está na posição de preterida, mas sim, de agente da própria vontade. Eu entendo que ainda não somos vistas para além dessas posições:
A mulher branca escolhe a mulher negra e ela, por sua vez, aceita aquilo como uma pomba no parque aceitando migalhas do desconhecido.
Embora isso seja um argumento valido e ainda muito usado (por conta do racismo), eu sugiro pensarmos por outra ótica:
A mulher negra que escolhe. Ela quem vai decidir com quem ficar. Ela que vai decidir permanecer ou não num relacionamento com uma mulher branca.
E aí talvez caiba lembrar das inúmeras relações afro centradas que não são politizadas e que reproduzem diversas opressões; adoecendo as envolvidas, aglutinando sofrimentos, estresse, raivas, devastação, desamparo… Alimentando a solidão e o descaso afetivo dessa mulher negra.
Acredito que muita gente parte do pressuposto de que somos (nós, a comunidade negra) uma massa homogênea cujo histórico vem de uma militância muito forte, com educação política desde cedo, em casa e nas ruas, e que todo mundo sabe e entende exatamente o que é o racismo e se posiciona politicamente contra ele; esquecendo-se de que o próprio racismo nos impede de ascender esferas políticas e sociais onde somos os principais interessados. Logo, deixam um pedaço da realidade de lado e dão ênfase em outro para apontar o quão errado são as relações inter-raciais.
E nessa visão que desconsidera a autonomia da mulher em julgar sua relação como saudável ou não, intensifica-se a solidão da mulher negra por dois motivos:
1- Exige-se dela uma postura contundente para que lide com o racismo duplamente (o dela e o da outra). Exige-se. Cria-se expectativas que ela deva corresponder a uma série de coisas que diz respeito a essa exclusividade afetiva racial. Sem se quer lembrar que tais exigências, por si só, já são abusivas porque elas vem do nosso íntimo -a individua- a necessidade afetiva de suprir uma carência que, poderá gerar uma frustração justamente porque expectativas são construídas no nosso imaginário e ninguém consegue executá-las tal qual desejamos. Não parece no mínimo questionável exigir isso da mulher negra? Justo ela, que sempre foi incumbida das responsabilidades, das decisões mais cortantes, das tarefas mais dolorosas. Ela tem que desempenhar esse papel ou podemos lembrar que as relações são construídas e que com isso, o fardo pesado é dissolvido e, portanto, uma relação mais saudável prevê a bonança?
2- Tira a agência da mulher negra, onde transeuntes é que vão dizer se o relacionamento DELA é saudável ou não. Retira uma pontinha de autonomia que deveria ser preservada e incentivada para que se torne um todo maciço. Fixando-a na posição de preterida para-todo-sempre e portanto, sua única salvação é um relacionamento afro centrado. E quando esse relacionamento falha brutalmente? A solidão da mulher negra é carimbada novamente. E quando esse relacionamento se desenvolve sem cuidado algum e se torna um rolo compressor? A solidão da mulher negra se intensifica. E quando esse relacionamento não problematiza o ciúme, a posse, a dominação sobre a outra; a reprodução de racismo, de machismo…?
A solidão da mulher negra será preenchida com relacionamentos negros que não problematizam nada? Ou vale nos sentirmos agraciados com uma mulher negra exercendo sua vontade em um relacionamento que se atenta para questões de raça e, portanto, constrói-se sob um alicerce anti-racista e combativo das opressões?!
E eu nem menciono cor, porque acredito que não existe uma pessoa isenta de reproduzir racismo (se negra) e de ser racista (se branca). Eu acredito na desconstrução diária e ininterrupta do racismo em suas miudezas. E aí fico me perguntando o quão nocivo pode ser estabelecer relacionamentos a partir e, tão somente, a partir da cor da pele. Fico com medo porque a solidão da mulher negra continua paulatinamente viva e não focamos exatamente onde deveríamos.
Tudo se torna o ano de 1995, na quadra da escola pública, onde dois times se separam para iniciar uma partida de bola queimada. A bola, é a materialização lúdica da a ideia de que todo mundo deva se relacionar de uma maneira. Aquela que é atingida por essa imposição, deixa no campo sua liberdade afetiva de escolha, seus sentimentos, sua capacidade de enfrentar desafios com quem quer que esteja ao seu lado. E segue para o banco embaixo da árvore. Senta. Ali, sente as raízes dessa solidão secular que carrega em si se embrenhar por campos limpos em seu corpo. Praticamente tudo fica dominado pela solidão. Ninguém quer falar disso pois o jogo continua até que todos estejamos convencidos.
Minha contribuição é para que possamos analisar e refletir essa questão afetiva com menos ideais e mais tato; menos cobrança e mais empoderamento. Acredito ser muito ingênuo a ideia de que só o amor afro-centrado é que cura tudo e liberta. Olhem ao redor. Apurem os sentidos. Ouçam, vejam, sintam. O racismo em todas as partículas invisíveis, ou “de cabo a rabo” como diria minha mãe. Portanto, empoderar nós, mulheres negras, para identificar quando estivermos numa relação potencialmente racista e que vai explodir larvas racistas pra todo canto em algum momento, me parece mais eficiente do que apontar e julgar relacionamentos não afro centrados, maldizendo-os errados pelo tom das peles envolvidas.
PS: Meu desconforto é com a imposição de algo. A imposição de algo que não me pertence, que não me sinto representada, me incomoda.
Espero que vocês que praticam relacionamentos afro centrados não entendam como um ataque. Mas espero que as pessoas que fazem esse movimento de imposição se sintam convidadas a refletir um pouco. Analisar criticamente esse projeto político e entender que ele não deva ser impositivo a ninguém porque nenhuma caixinha padrão. Nenhum modelo caberá a todas as pessoas. E a nossa autonomia de construir modelos que servem para nossas relações (que são únicas, claro) precisa ser algo vigente, prioritário.
Imagem destacada: Pinterest.