Esses dias enquanto eu fazia hora no aeroporto, ouvia a conversa de duas jovens negras que sentavam um pouco mais adiante que eu.
Meninas negras, com ares de periferia, traziam consigo o brilho do olho que acompanha tudo que fazemos pela primeira vez: empolgadas olhavam para todos os detalhes do saguão, sacavam seus celulares e faziam maravilhosas selfies: numa madrugada fria de aeroporto estavam fazendo seu voo inaugural; Felizes, carregavam o que pareciam ser materiais para se apresentar em algum congresso, riam, conversavam e imensa alegria viviam aquele momento.
Estavam tão inseridas em suas conversas que a princípio não os viram se aproximar, somente quando já estavam a seu lado perceberam o grupo de jovens, barulhentos, espalhafatosos que pareciam ter vindo de conexão de algum vôo internacional.
Chegando ao portão o grupo de jovens logo se dá conta da presença das duas meninas, observam-nas: sua pele, seus cabelos, suas roupas e com uma expressão facilmente reconhecível, trocam olhares entre si e percebo que já supõem que as meninas sejam viajantes de primeira viagem, e então começam a se exibir: falar alto sobre viagens anteriores e futuras, demarcam seu lugar naquele espaço e empurram para fora dali as duas meninas que antes pareciam tão felizes.
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Olho para aquele grupo de jovens e olho para as meninas, negras. Se antes estavam em plena vida e empolgação, agora olham acuadas uma para a outra, sua postura muda, os ombros encolhem, a coluna encurva e elas de cabeça baixa começam a cochichar. Nesse momento me levanto, me aproximo um pouquinho mais delas e numa conversa timidamente iniciada vou desviando sua atenção, perguntando sobre a viagem, amenidades sobre o tempo e pergunto sobre o congresso que irão participar, fico com elas muitos e muitos minutos e só saio de perto quando percebo que mais uma vez elas voltaram a sentir satisfação com a experiência.
Deixo as meninas quando percebo que estou no portão errado, e enquanto caminho para meu voo, penso nessa vivência: a interação com as meninas, o contato com seus sentimentos e atitudes, me fez pensar em mim mesma, em todas nós. Quantas vezes não estávamos satisfeitas conosco mesmas para mais adiante nos darmos conta que diante da conquista das/os outras/os parece que fizemos tão pouco? Quantas vezes depois de muita empolgação com vitórias alcançadas, não nos voltamos tristes e frustradas porque parece que não caminhamos quase nada diante de outras caminhadas? Quantas de nós já não passamos por isso? Muitas, me atrevo a dizer que talvez todas nós já tenhamos experienciado algo semelhante.
Pensar a nossa história, calcular o nosso avanço, mensurar a nossa conquista, não é uma tarefa simples, e desde o nosso lugar numa sociedade racista, machista e classista, exige de nós mulheres negras, antes de tudo o trazer à memória consciência de tudo que se passou antes de nós, um olhar afrocentrado que traga em seu bojo a capacidade de articular o real vivido ao passado, à experiência de nossos ancestrais, a história de nossas avós.
Talvez para um grupo de adolescentes de classe média alta e brancos/as seja fato corriqueiro e completamente esperado, estar num aeroporto em meio à espalhafatosas narrativas da aventura do retorno de uma viagem internacional, talvez para esse grupo, viajar de avião seja algo tão cotidiano quanto tomar um táxi na esquina, mas será que é o mesmo quando pensamos na experiência da população negra?
Para uma mulher branca de classe média, ingressar a universidade, concluir um curso superior seja algo mais que esperado, mas será o mesmo para nós mulheres negras? Cuja maioria ainda tem avós analfabetas?
Ter um emprego e ser capaz de pagar as próprias contas e ter moradia bonita e digna, é algo que está posto como certo para maioria das/os jovens brancas/os, mas será o mesmo, para nós mulheres negras, muitas vezes arrimo de família?
Nossas trajetórias não são as mesmas. Nossos caminhos há mais de 500 anos foram traçados de maneira completamente diferenciada. Então não podemos usar a mesma medida.
Nossa experiência fundante na sociedade racista brasileira não foi o cuidado, não foi o respeito, nem foi o exercício pleno no direitos. Fomos alijadas de uma gama de direitos – e ainda somos – e por não acessarmos plenamente nossos direitos básicos, dificilmente desenvolvemos plenamente nossas potencialidades o que mais uma vez nos devolve a um circulo vicioso de vulnerabilidades sociais e pessoais, pois diminui consideravelmente às oportunidades as quais acessaremos.
Romper esse círculo vicioso que nos prende a uma condição de subalternidade e reiterada opressão, num contexto de racismo estrutural, é exercício dos mais pesados, consome nossos esforços dioturnamente. Ser aprovada num vestibular, cursar uma faculdade, conseguir um emprego formal, fazer uma viagem de avião para apresentar um trabalho, montar sua primeira casa, conseguir fazer boas refeições todos os dias, tudo isso, nesse contexto de alijamento de direitos, são conquistas imensas. Transformam a cada uma de nós, mulheres negras em sobreviventes, vencedoras e heroínas, e não devemos nos esquecer disso.
Sempre que contarmos nossos passos, não devemos esquecer de qual foi nosso ponto de partida. Antes de aceitarmos que o que temos é pouco em comparação as/aos que sempre tiveram e terão, devemos lembrar que iniciamos sem nada. Não somos as bem nascidas que ao nascer já recebem um repertório e um capital sócio cultural que antecipa seus sonhos, desejos e as projeta para os melhores lugares na sociedade. Definitivamente, não somos. Somos aquelas cuja herança é a capacidade de resistência. A nossa herança é o acesso à mobilização de estratégias e táticas que nos possibilitam no limite da exaustão existir. É necessário trazer isso a memória na hora de avaliarmos as nossas vidas em seus mais singelos momentos. Esquecer disso, é culpabilizar a nós mesmas, é invisibilizar a nossa luta, é não ter consciência da nossa caminhada. Que possamos analisar a nossa caminhada, que possamos aprender a contar os nossos passos e somente assim, perceberemos o quão longe já chegamos e andaremos ainda mais!