Não me lembro de nenhum momento da vida em que não soubesse que sou negra e as implicações que isso tem. Conservo memórias dos primeiros anos de infância em que ouvia minha mãe contando suas experiências com o racismo. Ouvi essas histórias repetidas vezes, mas só muito recentemente percebi o quanto elas foram determinantes na minha vida.
Minha avó materna faleceu quando minha mãe tinha apenas três anos. Impossibilitado de criar quatro filhos sozinho, meu avô – trabalhador de olarias, perambulava de uma a outra o tempo inteiro – entregou as duas crianças mais novas (minha mãe e sua irmãzinha de dois anos) a pessoas interessadas em “cuidar” delas. Minha mãe foi “adotada” por uma senhora viúva que tinha outros filhos. Todos brancos.
Nessa casa minha mãe era responsável pelo serviço doméstico e outras tarefas. Quando atingiu dez anos foi enviada para “casas de família” como empregada doméstica. Conta que recebia roupas e alimentos como “pagamento”.
Minha mãe ficou praticamente analfabeta. No segundo ano escolar foi retirada da escola sob a alegação de que era muito encrenqueira. Ela batia nas crianças que a chamavam de “macaca” e “neguinha fedida”! Minha “avó” também concluiu que não havia mais necessidade de mantê-la na escola, já que havia aprendido o básico: escrever o próprio nome e fazer contas simples. Por ser mulher e negra a alfabetização era um luxo a que minha mãe não teve o direito de usufruir.
Sou da geração Xou da Xuxa. Como muitas crianças naquele período, ficava colada na televisão e fazia questão de tomar “café da manhã” com a Xuxa. Ela comendo frutas e outras coisas que eu nunca tinha visto, enquanto eu comia meu pão com margarina e café com leite (hoje percebo o quanto aquilo era violento com quem tinha pouco ou nada para comer pela manhã). Minha mãe criticava meu interesse na “loura”. Apontava para a TV e dizia: “A Xuxa não gosta de negros! Tá vendo algum negro aí?”.
E assim fui crescendo entendendo que minha cor de pele me distinguia, de certa forma, de outras pessoas e que isso tornava minha vida mais difícil em alguns aspectos. Eu teria que enfrentar olhares desconfiados e obstáculos que pessoas com tom de pele mais claro jamais teriam. Mas, também aprendi a me defender, a não aceitar passivamente as ofensas e a não me deter diante dos obstáculos!
Consciência racial: essa foi a grande lição que minha mãe me ensinou! Ter aprendido isso desde muito pequena foi (e ainda é) muito importante na minha caminhada. Me ajudou a lidar com muitas coisas e também causou alguns problemas para minha mãe. Como quando, por volta dos sete anos, eu cismei que queria uma boneca com minha aparência. Mas, aí já é outra história.
Imagem de destaque: Essence.