Há dias atrás enquanto procrastinava nas redes sociais me deparei com o anúncio de um conhecido tatuador que procurava um voluntário para ser tatuado por ele. Porém para poder se candidatar, o voluntário teria que atender a algumas especificações, entre elas, que deveria ser “mulher com pele clara (branca); magra (o suficiente para não distorcer o desenho)” (sic), pois segundo ele mesmo “não se trata de discriminação, trabalho com todos os diferentes aspectos físicos dos seres humanos e não me importo com eles, porem , tratando se deste projeto , necessito de algumas restrições para que se torne o que tenho em mente!!!!” (sic) (grifos nossos).
Segundo o anúncio, por se tratar de um projeto pessoal, a tatuagem não seria cobrada e não poderia ser modificada; a referida tatuagem tratava-se do desenho de uma grande baleia que seria “riscada” partindo logo abaixo dos seios, passando por todo o tórax e abdômen até a coxa da modelo com parte dos braços também sendo preenchida. Por onde começar quando um texto tão pequeno e aos olhos dos mais desavisados, aparentemente “inocente”, reproduz tantas opressões?
Inicialmente, ao declarar que certo ato não é intencionalmente discriminatório, não livra o emissor de praticar discriminação. Aliás, quando alguém inicia sua frase de tal maneira, a meu ver, denota uma auto acusação já que se assume que a declaração pode ser reconhecida como discriminatória pelos sujeitos discriminados. Ou seja, dizer por exemplo “não sou racista” não te livra de oprimir os negros e afrodescendentes, e no caso citado, outras minorias. Por esse motivo, mesmo se declarando uma pessoa livre de preconceitos, foram vários os comentários que criticaram a postura do profissional na postagem; desde as que apontavam o racismo, machismo, gordofobia e até mesmo apagamento de pessoas trans*, já que por algumas vezes o tatuador claramente ignorou o cissexismo apontado por elxs.
Aproveitando o gancho de um dos comentários acima expostos, endosso o questionamento: um meio que se intitula livre de preconceitos, que busca reforçar a ideia de que o sujeito é muito maior do que suas modificações corporais, pode fortalecer os padrões sociais e discriminações que tanto nega? Pode e, como o referido tatuador demonstra, o faz. Apesar de a modificação corporal nos dias atuais ser também utilizada como uma maneira de enfrentamento (não ignorando os outros tantos motivos que nos levam a praticá-la) perante as normas e moralismos da sociedade, ela também está integrada a esta mesma sociedade e, portanto, reproduz toda forma de opressões e discriminações.
Agora, fazendo uma análise da prática da modificação corporal em si, sobretudo da tatuagem. Me espanta sempre que visito páginas e sites sobre o assunto a quantidade ínfima de fotos que ilustrem corpos negros modificados. E pensar que práticas como escarificação, alargamento dos lóbulos da orelha e lábios, inserção de joias em orifícios diversos (o piercing) têm origem histórica em diferentes povos autóctones, sobretudo os do continente africano. Aliás, as imagens de tribos africanas que se utilizam de modificação corporal aparecem aos montes para referenciar e afirmar a ligação espiritual da body art com o primitivismo, porém na prática, os corpos escolhidos para ilustrar seus portfólios são em sua maioria de peles brancas.
O motivo, aparentemente, é de que tatuagens em peles negras têm menor contraste, podem com o tempo perder definição e portanto não se mostram tão bonitas (sic) quanto as feitas em pele clara. Beleza é algo totalmente subjetivo, e o que temos são particularidades naturais aos diferentes corpos humanos. Os profissionais devem estar conscientes de que usar fotos somente de pessoas brancas em seus portfólios se mostra como um desserviço a nossa população de maioria negra, pois pode passar falsas informações quanto as especificidades da tatuagem adequada para os variados tons de pele. Acredito que esta prática vai contra até mesmo a divulgação de seu trabalho, pois deixa de demonstrar todas as habilidades do tatuador, além de revelar, também, a descarada invisibilidade da população negra.
Há uma informação que circula, que vou me atrever a chamar de “mito” (e já explico adiante o porquê), entre muitos tatuadores de que a pele negra tem certa resistência a outras cores de tintas que não sejam o black e o grey. Sobre isso, na minha pesquisa não achei um consenso: há tatuadores que recomendam somente a cor preta, outros, se utilizadas outras cores, recomendam apenas tons de cores frias, outros ainda tons de cores quentes. A minha ideia de “mito” se dá porque num país de maioria negra, estamos inseguros quanto a informações precisas sobre nossa própria pele e sobre como modificá-la, ou seja, no que diz respeito à modificação corporal não estamos aptos a nos tornarmos plenamente conscientes e donos de nossos próprios corpos, muito menos de utilizá-los como meio de enfrentamento. O foco da discussão foi a pele negra, mas não posso deixar de citar a variedade de nossos tipos físicos e suas especifidades. Porém, segundo a declaração do tatuador que abriu este texto, a postura de muitos profissionais da body art revela a “não importância” de nossos corpos, desde que sirvam como suporte adequado para seus próprios trabalhos.