Por Cris Oliveira para as Blogueiras Negras
Tem um blog alemão de humor e variedade que eu adoro futucar nas horas vagas. Ele junta vários videos interessantes e engraçados que pessoas do mundo todo mandam pra ele. Os comentários são ótimos e boa parte dos vídeos também. Essa semana encontrei um, que primeiro me fez sorrir e depois me colocou pra pensar muito. Assistam: Krs One, The Sound Of Da Police por Sjef_van_Boekel.
Pra quem não entendeu nada, se trata do festival Roskilde na Dinamarca, e o que vocês podem ver é uma patrulha policial. A “viatura” é uma espécie de boombox gigante, empurrada por uma pessoa e puxada por outra, provavelmente participantes do festival. Em cima do carro uma reporter pega carona com seu instrumento de trabalho. Ao lado dela, dois policiais sorridentes vão curtindo o som de KRS One – Sound of da Police.
Nos comentários abaixo do post no blog, se lê pessoas confirmando que o clima lá nesse festival é assim mesmo. Todo mundo relaxado e engraçadinho inclusive a polícia. Conversando com uma professora dinamarquesa lá da escola onde trabalho, ela me disse que a polícia deles tem fama de ser assim mesmo: leve, super tranquila e muito, mas muito educada mesmo. Sei que é covardia querer comparar Dinamarca com Brasil, mas não pude deixar de pensar em nossa polícia e como tudo é diferente por lá.
Eu sei que existem vários fatores que fazem a polícia brasiliera ser do jeito que é. Sempre tem. História, péssimos salários, formação ruim, falta de investimento em especializações, péssimo treinamento, falta de incentivo e reconhecimento dentro da corporação, condições de trabalho precárias e extremamente perigosas e a lista não para. Eu sei que não é fácil ser policial no Brasil. Mas também sei que não é fácil ser cidadã/o e depender dessa instituição. Quando vejo a forma como nossa polícia tem lidado com manifestantes e a imprensa, e principalmente como lida com a população negra de baixa renda, fico assustada. Não queria pensar assim, mas na verdade a máxima que diz “não sei se tenho mais medo de ladrão ou de polícia” é a mais pura verdade.
Assisto novamente o video desse festival dinamarquês e fico pensado em como a imagem é surreal. Policiais felizes, provavelmente bem treinados e ganhando bem, podendo exercer sua profissão sem medo, integrados no ambiente no qual tem de trabalhar, fazendo seu trabalho sem assustar ninguém. O pessoal no video parece estar curtindo a piada e não morrendo de receio de ser aleiatoriamente vítima de violência policial. A ironia da cena vem do fato que a letra da música que eles estão ouvindo tão despreocupados, lembra mais a realidade de outros cantos do mundo do que a deles próprios. KRS One canta sobre os Estados Unidos, mas bem que poderia estar cantando sobre o Brasil.
Na música o rapper compara o policial com um “overseer”, um feitor “e faz uma exigência: “First show a little respect, change your behavior/ Change your attitude, change your plan” que traduzindo fica assim: demonstre um pouco de respeito, mude seu comportamento, mude sua atitude, mude seu plano. E é verdade, né? Nem nos Estados Unidos, nem no Brasil, a comunidade negra carente pode contar com proteção policial. Pelo contrário, este grupo social é vítima constante de constragimentos e humilhação ao lidar com a polícia, normalmente já de cara sendo tratados como suspeitos e eternas vítimas do racismo institucionalizado do Brasil. A sociedade, por sua vez, é conivente com esse quadro, quando prefere ignorar que a grande maioria das vítimas de mortes violentas no país tem um perfil mais do que claro: morador de periferia, jovem e negro.
Me dá medo quando percebo que além de não se indignar com essa situação, nossa sociedade ainda começa a defender medidas drásticas como a diminuição da idade penal. Se isso algum dia isso virar realidade, o perfil dos alvos favoritos da polícia mudaria de jovens negros entre 19 e 24 anos para ainda mais jovens e isso é assustador. Minha tendência é achar que a solução para quase todos os problemas sociais do planeta é educação. Uma sociedade bem educada conhece bem seus direitos e deveres e por isso sabe acompanhar o trabalho de seus representantes e quando necessário exigir mudanças. Uma sociedade bem educada também sabe que é importante estar atento e envolvido em diversas questões sociais e não somente com aquelas que tem a ver com o próprio umbigo.Uma força policial bem educada, por sua vez, conhece bem a população a qual tem de servir, seus problemas e a melhor forma de lidar com eles. Uma polícia bem educada sabe que seu lugar não é acima da lei e sabe que eles não são pagos pra coagir ninguém.
Educação faz as pessoas mais críticas e menos dispostas a seguir ordens cegamente. Mais educação significa menos vítimas de qualquer coisa, seja de crimes violentos, opressão ou destino. Com educação o ser humano fica mais firme pra fazer as próprias escolhas e aceitar as consequências delas e discursões se tornam hábito, atividade corriqueira.
Não dá mais pra evitar discutir sobre a polícia brasileira. Já passou da hora de toda sua estrutura, treinamento, atitude e filosofia serem colocadas em questão. Mas enquanto a gente preferir acreditar que cadeia é melhor que escola e que as mortes da periferia não tem nada a ver com a gente, as frases que eu retirei do rap de KRS One (e esse rap é de 1993), infelizmente sempre corresponderão à nossa (vergonhosa) realidade.
“I know this for a fact, you don’t like how I act
Eu sei que isso é um fato, você não gosta de como eu ajo
The overseer rode around the plantation
O feitor cavalgava pela plantação
The officer is off patroling all the nation
O policial tá por aí patrulhando a nação
The overseer could stop you what you’re doing
O feitor podia parar o que você está fazendo
if you fought back, the overseer had the right to kill
Se você se defendesse, o feitor tinha o direito de matar
The officer has the right to arrest
O policial tem o direito de prender
And if you fight back they put a hole in your chest!
E se você se defender eles metem bala em seu peito
They both ride horses
Os dois andam a cavalo
After 400 years, I’ve got no choices!
400 anos mais tarde eu não tenho escolha!
My grandfather had to deal with the cops
Meu avô tinha ade lidar com policiais
My great-grandfather dealt with the cops
Meu bisavô tinha de lidar com policiais
And then my great, great, great, great… when it’s gonna stop?!
O meu tataravô … quando isso vai acabar?
Eu me pergunto o mesmo. Quando esse ciclo doente vai parar? Quando as pessoas começarão a apreciar o componente africano de nossa cultura em qualquer época do ano e não somente no carnaval? Quando vão parar de ignorar que a desigualdade social no Brasil está intimamente ligada com o racismo e parar de ficar investindo tanta energia em negar que ele existe?Quando vamos nos indignar com essa polícia repressora, despreparada e assassina da juventude negra? Quando vamos finalmente entender que não existe desenvolvimento verdadeiro enquanto existirem grupos que são deixados pra trás? Quando?
Cris Oliveira é mestra em linguística e professora de inglês. Escritora nas horas vagas e amante de cerveja gelada vive há onze anos com um pé em Bremen na Alemanha e outro em Salvador. Escreve sobre interculturalidade, sobre viver entre dois continentes e um monte de outras coisas no A Saltimbanca.
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