Esses dias li na internet uma nota dizendo que o jogador Neymar não se considera negro, tudo bem ate aí, pois entendo que identidade é algo construído a partir também de nossas vivências, como diz o poeta Sergio Vaz “nascer negro é consequência. Ser é consciência”. A partir dos comentários na matéria citada, falando do cabelo do jogador em questão e a respeito da nossa “mistura brasileira”, e de alguns outros textos lidos que versavam sobre nosso cabelo crespo, encaracolados, cacheados, de preto, enfim as várias falas referentes a esse que é um símbolo da negritude mundial, comecei a pensar em como tentam nos tirar tudo.
É fácil observar nas movimentações sociais da atualidade alguns componentes portando, com toda pomba, um cabelo black todo armado, mesmo a pessoa sendo branca como leite, ainda vemos com certa frequência o punho cerrado para cima em alusão ao gesto símbolo dos Panteras Negras na luta contra o racismo norte-americano e que ficou mundialmente conhecido graças aos atletas Tommie Smith e John Carlos, ouro e bronze nos 200 metros rasos nas Olimpíadas de 1968, que reproduziram o gesto no pódio em protesto contra a segregação dos negros nos EUA.
O que fico me perguntando é se essas pessoas tem noção do que estes “elementos” significam de fato para a luta do povo negro. Ok, o leitor pode me dizer, “é uma questão de identificação com a causa”, entendo que, realmente, a força que estes símbolos ganharam, de resistência e contestação atingiu um nível esplêndido, porem ninguém se “torna negro” sem vivenciar as lutas desse povo de alguma forma e tão pouco sem conhecer as literaturas que tratam do movimento negro. Além disso, os usos que se faz destes elementos símbolos são os mais diversos, temos Black Power em movimentos que estão longe de discutir e defender as reivindicações dos negros.
Como feminista, cientista social e pesquisadora que sou, observar é meu lugar comum, minha ferramenta de trabalho. Tenho cá minhas considerações em relação a movimentos que não conseguem agregar um grupo maior de pessoas simplesmente porque não dimensionam as diferentes mazelas que afligem uma população devido a sua cor ou etnia. Dessa forma, me causa certo incomodo ao ver pessoas ostentando os grandes símbolos da resistência negra apenas como forma de se legitimar dentro de um grupo político. Ou, pior ainda, para dizer que é contra a institucionalização de um padrão estético.
Ao me deparar com debates a cerca do alisamento dos nossos cabelos, não questiono quem o faz, pois ter cabelo afro só é problema para quem ainda não internalizou a beleza e a força que ele representa. O que mais me incomoda é ver pessoas fazendo uso dos elementos da nossa identidade étnica como fizeram com vários elementos da cultura negra, desvirtuando seus significados e se apoderando de algo que não lhes é legítimo. Dessa forma, a capoeira que era luta virou dança, Iemanjá virou estatua branca na maioria das praias brasileiras, a feijoada já conseguiu as mais diversas versões (light e até vegetariana), acarajé virou bolinho de Jesus e os turbantes se tornaram mais uma peça entre os vários acessórios da moda.
Fruto do nosso sincretismo, da nossa mistura, o brasileiro é um povo mestiço? O discurso é sempre o mesmo, bonito na teoria, pois passa a ideia de igualdade, de aceitação. A meu ver não é tão simples assim, acredito que essas “adaptações” servem muito mais para que a elite branca se aproprie da parte que melhor lhe cabe da cultura negra, ou seja, branquear Iemanjá a torna mais aceitável aos olhos dos brancos cristão que frequentam as praias nas férias. Posso parecer radical, mas não sou fundamentalista, todos tem a liberdade de fazer usos daquilo que lhes agrada. Para mim, ver uma negra loura e lisa é tão natural quanto ver uma branca usando Black, desde que ela não acredite que, ao fazer a escolha por este elemento étnico, esteja absorvendo todas as representações que eles traduzem, pois se referem a um povo e suas particularidades.
Dessa forma, alisar o cabelo não transforma ninguém em branco, bem como, usar Black Power não faz de ninguém um negro. Não basta ostentar uma “casa de cupim” na cabeça, achando que incorporou a atitude simbolizada nele, esta se constrói na prática consciente e ações que beneficiem uma população excluída dos mais diversos espaços. A força está na pessoa, à atitude esta nas suas práticas, usar os símbolos históricos da resistência negra não é um modismo, não precisamos de uma falsa representatividade, de uma pretensa identificação com a causa.
Tentam nos tirar tudo a todo o momento, ate nossa identidade histórica, seriam as velhas práticas advindas da época do tráfico negreiro que ainda povoa nossa sociedade?! Acredito que a harmonia ditada pela tal democracia racial só existe para aqueles que gostam de repetir frases feitas!