Por Fernanda Souza para as Blogueiras Negras
Para Mayara e Odara, as pretas da minha vida
“(…) a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha dentre outras, mas tornar-se negra é uma conquista.” (Lélia Gonzalez)
“Como formar uma identidade em torno da cor e da negritude não assumidas pela maioria cujo futuro foi projetado no sonho do branqueamento?” (MUNANGA, p. 137, 2004)
A vida inteira me vi e me considerei uma mulher parda, morena, mulata, mestiça, mas jamais, em hipótese alguma, negra. Apesar de ter tios e primos negros, além da minha falecida avó ser negra, não me reconhecia como tal por não achar que meus pais fossem negros, pois acreditava na ideia de que negras eram somente aquelas pessoas que tinham a pele mais escura e o meu pai e a minha mãe poderiam ser vistos, inclusive por eles mesmos, como mestiços e não como negros. É aí que temos uma das grandes sutilezas e ao mesmo tempo um dos maiores problemas para a conscientização racial no país: o mestiço. O mestiço, como uma categoria intermediária entre o branco e o negro, é resultado do longo processo de mestiçagem que marca o Brasil. Mestiço aqui deve ser entendido principalmente como alguém filho de um casal inter-racial (no caso, me refiro à união entre um negro/a e um branco/a) e também pode, para facilitar a compreensão desse texto, ser entendido como alguém que, ainda que não seja filho/a de um casal inter-racial e sim de pais negros, tem a pele mais clara e teve/tem dificuldade de assumir-se como negro. Mais uma vez reitero: esse alargamento do conceito de “mestiço” é apenas para ajudar no entendimento do texto e não ter que utilizar a expressão “não-brancas” porque abarca outras etnias, como a indígena e nem “pardos”, pois acho politicamente inócuo para um texto que vai discutir, sobretudo, a mestiçagem e a dificuldade de se afirmar uma identidade étnico-racial.
A mestiçagem constitui o pilar do mito de democracia racial, cuja ideia central é de que somos mestiços, fruto da mestiçagem entre as três raças – branca, indígena e negra – que ocorreu através de um contato e de uma convivência harmoniosa entre as três – esquecendo-se que esse processo teve início a partir do estupro da mulher negra escravizada pelo senhor de engenho e não há nada de harmonioso nisso – e, nesse sentido, aqui não existe tanta discriminação e preconceito racial e as pessoas se reconhecem antes como brasileiras do que a partir de uma identidade étnico-racial de oprimido, pois o mito da democracia racial dissolve, atenua e encobre as tensões, conflitos e preconceitos raciais presentes no Brasil, como aponta Kabengele Munanga (2004).
Isso pode ser exemplificado pelos discursos daqueles que se opõem às cotas raciais porque “somos todos mestiços” ou porque no Brasil “é difícil saber quem é negro” (embora a polícia saiba muito bem quem é ou não, ainda mais nos últimos tempos, com tantos negros sendo assassinados nas periferias, né?), além do discurso, muito conveniente para quem está montado em cima de uma série de privilégios e que nunca foi oprimido, de que “o preconceito está na cabeça de quem vê”, chegando ao extremo de dizer, numa demonstração de completa má fé e ignorância, de que “o racismo foi inventado pelos próprios negros”. Afinal, somos vítimas de uma discriminação inventada e consolidada historicamente por nós mesmos e não tem nada a ver com o desenvolvimento do capitalismo comercial a partir da expansão europeia no século XV, que teve como resultado o contato dos europeus com populações não-brancas, como as africanas, em que o racismo foi construído ideológico e politicamente enquanto sistema de exploração e dominação a partir da negação da humanidade do negro, que assim, então, justificava a escravização de milhões de africanos.
O mito da democracia racial, aliado ao ideal de branqueamento, remodelado, sustentado e difundido por aparelhos ideológicos como escola, família e mídia, que veiculam valores que reforçam uma suposta superioridade racial e cultural branca, torna um desafio o processo de afirmação de uma identidade negra em uma sociedade racista como o Brasil. Desafio não só porque o negro é inferiorizado, discriminado e invisibilizado constantemente, mas também pela mestiçagem, que cria um contínuo de cor em que se expressam diferentes tons de pele, existindo então, como muitas pessoas dizem, os “negros mesmos”, os “negros de verdade” (pessoas de pele mais escura) e os “mestiços”,”café com leite”, “moreninhos” (pessoas de pele mais clara). Estes, por sua vez, em um país racista, onde o branqueamento é um valor e um modelo hegemonicamente estabelecido ao qual se deve buscar atingir, tendem a negar e não afirmar qualquer identidade ligada à negritude, buscando, a todo custo, se embranquecer, uma vez que internalizam uma autoimagem negativa de si, reforçada, por exemplo, por uma mídia que exalta e propagandeia apenas a beleza de mulheres brancas.
Nesse sentido, busca-se apagar, inutilmente, qualquer traço que remeta a uma afrodescendência a começar pelo alisamento do cabelo, estimulado, muitas vezes, desde a infância, o que atinge centralmente as mulheres. Aí temos um impasse, na medida em que a brancura se configura principalmente como um conjunto de características que inevitavelmente estão ligadas a fatores biológicos (cor da pele, cabelo liso, etc.) que uma mulher mestiça nunca vai atingir de uma maneira que não fique “artificial”, além de nunca ser considerada como branca, afinal, mesmo alisando o cabelo, a cor da pele e traços como boca e nariz ainda vão remeter a uma negritude que se tenta tanto negar. O ideal tão divulgado e inculcado é, então, impossível de ser atingido e constitui uma das maiores angústias e também uma forma de violência que destrói a autoestima de muitas mulheres. Não sendo branca e não se considerando negra, como fica o processo de afirmação de uma identidade étnico-racial de uma mulher mestiça ou o que podemos chamar posteriormente de mulheres negras de pele mais clara? Aí que eu entro novamente na história.
Desde os oito anos de idade o meu cabelo começou a ganhar muito volume, mostrando-se crespo e o mantive assim desde então, até que, após várias pessoas, inclusive minha mãe, me incentivarem a “domar” o cabelo e “abaixar o volume”, fiz relaxamento por duas vezes, quando tinha uns 12 anos ou 13 anos. Além dos produtos federem, sentia que antes estava agredindo o meu cabelo do que cuidando dele, mas como era preciso abaixar o volume, afinal, “cabelo crespo dá muito trabalho”, acabei me conformando com a situação. Para radicalizar então, uma vez fiz chapinha e ao me olhar no espelho achei que havia ficado horrível, porque eu achava que um cabelo liso não combinava com alguém com lábios tão grossos e com um nariz como o meu. Tudo me soava desproporcional e me sentia feia. Até hoje olho com certo desgosto minha foto da formatura do ensino fundamental, onde estou de cabelo liso. Daí pensei: “bom, se cabelo liso em mim fica feio e eu não gosto do meu cabelo relaxado, vou assumi-lo tal como ele é e assim serei bonita”. Comuniquei a minha mãe sobre essa decisão e ela disse que não tinha problema, embora vez ou outra me dissesse que eu deveria fazer relaxamento de novo.
Ao chegar ao ensino médio, com o meu cabelo, aos poucos, perdendo a química do relaxamento, ainda não me sentia bem comigo mesma e, pra piorar, fui chamada de “Maria Bethânia” algumas vezes na rua e uma vez me perguntaram se eu não sabia o que era um pente. Por não me ver como negra, não me sentia alvo de discriminação racial, mesmo que falassem que eu tinha “bocão” ou de alguma maneira falassem mal do meu cabelo ou até mesmo “brincassem” com ele de um jeito que me incomodava profundamente, como tentar “esconder”, sem eu perceber, lápis e canetas nele. Ainda que pudesse ser duramente criticada, eu não sentia vergonha do meu cabelo, até porque uma das minhas primas, cabeleireira de salão voltado para o cabelo afro e crespo, me incentivava a procurar deixá-lo natural e eu então considerava que cuidar do meu cabelo era algo crucial para a minha autoestima. Ao longo do ensino médio, permitia que as pessoas me chamassem de morena ou mulata e achava que isso era até mesmo um elogio, pois ainda não percebia a carga de hiperssexualização e objetificação que essas palavras traziam. Enfim, nesse período eu tinha não qualquer possibilidade de me assumir como negra, ainda que fosse minimamente consciente a respeito do racismo. Havia os negros e negras e havia eu, no limbo entre não ser branca, mas também não me considerar negra.
Ao entrar na Universidade de São Paulo, no curso de Letras, um mundo novo se descortinou pra mim, onde tive meu primeiro contato não só com os veteranos, professores e calouros assim como eu, mas também com o movimento estudantil, com o feminismo e com inúmeras outras discussões e movimentos que eu desconhecia. Processo de descobertas, sustos, surpresas, em que comecei a me entender não apenas como uma simples estudante, mas também como um sujeito político e, depois de me envolver com o coletivo feminista do curso, me entendia também como uma mulher consciente sobre machismo, oprimida por ele e que também deveria lutar contra isso. Foi então a partir da amizade desenvolvida com uma mulher negra, também estudante de Letras, a Mayara, a quem dedico esse texto, foi que comecei o meu processo de “tornar-se negra” (SOUZA, 1990), isto é, ter consciência da minha negritude, na medida em que ela me via como uma mulher negra, me considerava sempre dessa maneira e conversava muito sobre racismo comigo. Ser percebida pelo outro como negra e ao mesmo tempo ainda não me perceber dessa maneira me fez refletir muito.
No próprio coletivo feminista, majoritariamente composto por mulheres brancas, percebia que a maioria das meninas me considerava uma mulher negra e uma delas, inclusive, me disse que eu deveria ajudar a construir e a liderar a atividade da calourada sobre a representação da mulher negra na literatura brasileira, pois havia poucas mulheres negras ativas no coletivo e eu era uma delas. Eu fiquei surpresa quando ouvi isso, pois ainda não me considerava negra. (Essa pessoa que me disse isso talvez até hoje não saiba a importância que teve nesse processo pra mim, mas ao ler esse texto, espero que se reconheça aqui e saiba da minha gratidão). Depois de muito refletir, concluí o que era evidente pra todos, menos pra mim: “Eu sou uma mulher negra! Preciso me assumir!” Construindo a atividade sobre a mulher negra e podendo contar com a ajuda das demais meninas, que sempre foram legais comigo e muito contribuíram para o que eu sou hoje com as inúmeras reuniões auto-organizadas, pude, então, de fato, me sentir uma mulher negra, me assumir dessa maneira e falar a partir desse lugar. Se me chamam ou me falam que sou morena, hoje corrijo sem o menor problema: “Não, não sou morena, sou negra.”
Eu entendo que o processo de “tornar-se” negra é, primeiramente, pessoal, mas assume também uma dimensão política-ideológica em uma sociedade eminentemente racista como a nossa, em que o branqueamento ainda se coloca como um ideal, em que ser branco constitui um privilégio, em que a mestiçagem fragmenta a identidade étnico-racial na medida em que os mestiços tentam se aproximar mais de uma brancura inatingível do que de uma negritude que seja explicitamente assumida no seio das relações raciais do Brasil, se firmando tanto como resistência como uma maneira de lutar contra o racismo — antes que me entendam mal, é óbvio não me oponho à mestiçagem, até porque é um processo natural, mas é preciso pensar nas implicações que dela decorrem, muito mais políticas do que meramente biológicas, como o desejo de “clarear” a família e de diminuir o segmento propriamente negro da população (MUNANGA, 2004). É preciso ter consciência de que, independente de a sua pele ser mais escura ou mais clara, você ter traços que remetem a uma afrodescendência, a uma negritude, faz você ser parte da grande parcela da população brasileira que é oprimida pelo racismo. Assumir-se como uma mulher negra é uma atitude, sobretudo, política. Mulheres negras de pele mais escura ou mulheres negras de pele mais clara, nós não estamos nos espaços de poder, não estamos nas universidades dando aulas, não estamos na mídia como jornalistas, ou apresentadoras, não estamos nos cursos mais prestigiados, mas estamos limpando o chão desses espaços, estamos trabalhando como empregadas domésticas, estamos morando nas periferias, sendo desrespeitadas e invisibilizadas todos os dias.
Do alisamento ao black power, há em todas nós uma trajetória de superação e de resistência. E superar não significa esquecer, mas saber fazer da experiência ruim um aprendizado e um modo de transformar a si mesma. A nossa transformação é a afirmação de uma identidade negra, em permanente construção e constantemente desafiada a partir do momento em que precisamos nos impor em todos os espaços com nossos cabelos, nossa cor e nossas maneiras de ser, criando e construindo formas de resistir e de responder a olhares e discursos racistas e machistas, que tentam nos diminuir e nos objetificar simplesmente por sermos mulheres negras, pois nos atrevemos a sair da cozinha e da senzala para ocupar, ainda que não seja de uma maneira expressiva como desejamos, os espaços das universidades, das empresas e todos os demais espaços majoritariamente ocupados por brancos. Entretanto, sabemos que a nossa luta é grande, diária e para a vida inteira. Às mulheres negras que ainda estão na cozinha e nos demais trabalhos precarizados, cabe a nós também ajudar a libertá-las e se orgulharem de quem são, assim como cabe a nós incentivar as pessoas que, atraídas pela armadilha do branqueamento, ainda não se assumiram como negras e sofrem tentando atingir o inatingível: se branquear. Isso tudo porque nossa identidade negra é, antes de tudo, uma identidade coletiva. Se a união faz a força, a união de nós, mulheres negras, nos faz, citando Elza Soares, “brigar sutilmente por respeito, briga bravamente por respeito, briga por justiça e por respeito, de algum antepassado da cor.”
REFERÊNCIAS
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: Identidade nacional versus Identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal, 1990.