É corrente a afirmação de que no Brasil não há perseguição religiosa, que aqui há liberdade de professar qualquer credo e/ou religião, fato garantido por Lei Federal e respeitado por todos. Será verdade? Quero afirmar que esse é mais um mito construído e fortemente repetido em nosso cotidiano (mais um mito tal como o mito da democracia racial que todos os dias vemos ser uma imensa mentira), pois apenas algumas manifestações religiosas são encaradas e respeitadas desse modo.
Convido as leitoras e leitores a fazer um exercício de imaginação: uma mãe de santo sai de casa trajada com os paramentos da sua religião – roupa branca, turbante, quelê – cordão de contas de orixás – no pescoço – entra em um ônibus, alguém se sentaria ao seu lado? Ela continua o seu percurso, chega à escola onde é professora, os alunos “permitiriam” que ela ministrasse sua aula? A direção aceitaria a sua indumentária sem chamar a sua atenção? Seus colegas conversariam com ela normalmente na sala de professores? Os pais de alunos aceitariam suas vestimentas sem queixar-se com a direção da escola ou com a professora diretamente? Esse é apenas um exercício de imaginação nunca presenciei uma situação como essa, mas sei que todos os dias em nosso país esses fatos ocorrem e há alguma forma de violência, de perseguição religiosa específica, pois o uso de outros símbolos religiosos não é perseguido ou impedido em nossos espaços públicos.
Todavia, meu objetivo não é o de estimular a imaginação daqueles que me leem. Quero chamar a atenção para a ambiguidade existente entre o discurso da liberdade religiosa e a realidade da perseguição aos centros, aos sacerdotes, aos rituais e práticas religiosas usadas pelo candomblé e a umbanda, isto é, às religiões de matriz africana. Cada vez mais centros tem sito atacados, imagens destruídas, praticantes dessas religiões agredidos em nome da fé, da pureza, da santidade. As agressões são verbais, pichações às fachadas dos centros, apedrejamentos, invasões e incêndios aos centros, destruição de imagens e agressão física aos praticantes dessas religiões, muitos desses casos são descritos nos jornais de diferentes cidades e foram relatados no livro A Presença do Axé — Mapeando Terreiros no Rio de Janeiro, organizado pela historiadora Denisi Pini Fonseca e pela antropóloga Sonia Giacomini.
Porém, o que move esses agressores, e infelizmente não são poucos, é o racismo, a intolerância religiosa e a impunidade. Não se tem notícia que os criminosos que vandalizam os centros tenham sido presos os condenados por seus atos. Alguns dos leitores podem contra argumentar: o racismo é culpado por esses atos criminosos?! Por que?
O Candomblé e a Umbanda tem uma história ancestral do continente africano, são religiões que ajudaram os negros e negras escravizados a sobreviver e a resistir às terríveis agruras da escravidão no Brasil e em outros países da América Latina. No período colonial eram praticados de modo disfarçado e escondido apenas por eles e através dessas religiões negras e negros conseguiram contar suas história e criar uma identidade longe da sua terra. Como no mostra Thomas Skidmore em “Preto no Branco: Raça e Nacionalidade no Pensamento Brasileiro” o Brasil pretendeu, durante muito tempo, apagar todos os elementos negros da sua história, a elite política e intelectual procurou embranquecer e europeizar o país, esse objetivo não foi totalmente esquecido! Ele sobrevive na mente e no coração de muitos brasileiros, sendo eles da elite ou não. Ainda se quer embranquecer o Brasil na esperança preconceituosa de torná-lo “melhor”, desse modo, quebrar, apagar as marcar das religiões de matriz africana continua sendo uma forma de tentar embranquecer o Brasil. Mas é hora de lembrar que esse ato é um crime previsto em nosso Código Penal e tem de ser combatido!
A atitude de grupos de fundamentalistas religiosos e agressores deve ser freada e punida. É preciso por em prática a perspectiva de vivemos em um país cuja justiça é laico e comprometida com os princípios de um Estado Democrático de Direito. Nosso Estado é laico, desse modo, os espaços públicos como escolas, universidades, postos de saúdes, hospitais, repartições públicas, etc., não são locais para professar a fé e impedir que pessoas cuja denominação religiosa é “diferente” sejam discriminadas agredidas ou humilhadas.
Um avanço nesse processo a não discriminação das diferentes formas de religiosidades e principalmente das religiões de matriz africana seria a real aplicação nas escolas de ensino fundamental da Lei federal 10.639/03 que fala da obrigatoriedade do ensino da história da África e da cultura afro-brasileirade, pois assim a cultura afro-brasileira seria aprendida e vista de modo positivo, sem preconceitos ao contrário do que temos atualmente em que a cultura afro-brasileira é invisibilisada nas escolas ou, o que é muito pior, apresentada com preconceito, suas expressões religiosas distorcidas e por vezes demonizados.
A democracia que tanto prezamos que nos dá direito ao voto, que nos oferece também a liberdade de escolha e de expressão só é completa quando todos os cidadãos podem usufruir dela. E a verdadeira liberdade religiosa também é parte da democracia. Assim, afirmo que deve fazer parte da nossa pauta de reivindicações por um Estado democrático pleno a plena liberdade religiosa no Brasil.
Imagem destacada: Notícias da Comissão de Combate a Intolerância Religiosa (http://ccir.org.br/) – Junho de 2014