Uma mulher negra empoderada incomoda muita gente

Sou notívaga. Sempre fui. Já tive na adolescência a fase de varar madrugadas assistindo a àqueles filmes água-com-açucar, já tive a fase de amanhecer acordada estudando pro vestibular, depois me vi acalmando recém-nascido, ou chorando sozinha por um amor perdido, uma humilhação sofrida ou um sonho que teve que ser esquecido, e por fim me vi na época em que estava acordada estudando para conseguir estar apta e responder ao novo-desafio-novo no trabalho. E fui ficando acordada por tanto tempo e até hoje,  que estar acordada durante as madrugadas virou um hábito.

A quietude, o silêncio da noite me tornam mais produtiva, mais atenta, mais interessada eu diria, a noite tudo se reveste de mais contorno, mais nitidez para mim…

Foi numa dessas madrugadas há um tempo atrás, enquanto me envolvia em dúvidas-estudos-inquietudes,  que eu recebi um convite para um grupo virtual  de mulheres negras.

Aceitei o convite  e imediatamente ingressei no grupo. Em meio a curiosidade comecei a ler todo o conteúdo e quanto mais eu lia, mais queria ler. Quando cheguei aos conteúdos daquela noite, de repente alguém posta um desabafo: “Estava triste, se sentindo desrespeitada em seu emprego, lia o racismo na atitude das pessoas e não conseguia saber como reagir…”. Enquanto lia eu conseguia sentir cada uma das palavras daquele relato reverberando no meu interior, eu sabia do que ela estava falando, poderia ser eu ali falando, parecia que ela estava relatando uma de minhas experiências no mundo do trabalho.

Após essa postagem lá pela uma hora da manhã,  li uma postagem de uma  jovem negra que se sentia humilhada pelas primas de pele branca e que não conseguia se defender porque quando levava esse conteúdo para as tias, virava motivo de piada. E durante todo o tempo em que fiquei, li novas postagens que traziam um pouco de cada uma daquelas mulheres negras, mas que parece que também diziam de mim.

O Grupo de facebook era mais do que mulheres que não conseguiam dormir cedo: era espaço para falar e colocar para fora essa energia e essa destruição que  uma sociedade racista e machista impõe, era a ruptura com o silenciamento e abertura de novas e positivas energias que não adoecerão nossos corpos. Tudo que lia  me soava estranhamente familiar, e isso tinha um motivo: Nós, mulheres negras temos uma existência singular e uma existência enquanto um coletivo que sobreviveu, que resiste. A experiência de ser Viviana é singular e ao memso tempo plural, porque a Mulher Negra Viviana vivencia e/ou vivenciou muitas experiências muito parecidas e muito presentes na vida de todas e cada uma daquelas mulheres negras ali no grupo, porque Viviane é uma Mulher Negra.

Nas madrugadas seguintes voltei ao Grupo e a cada madrugada ia percebendo que muitas outras mulheres, negras como eu,  também estavam despertas, atentas e em plena produção; e assim nessa descoberta deu-se o encontro e do encontro nasceram as partilhas, as escutas, as re-invenções, re-descobertas, a organização de estratégias de resistência e lutas…

Nós mulheres negras, nos sentimos muito fortalecidas, as partilhas nos ajudam a dar um nome a essa dor toda que durante tanto tempo sentimos, a certeza da presença da outra nos serve como colo, naquele dia em que por mais que reconheçamos e saibamos sobre toda a dor que o racismo nos provoca, não muda o fato de que dói muito quando somos por ele machucadas.

Reconhecer a dor, desnaturalizá-la, nomeá-la, enfrenta-la é mais que Grupo de Discussão: É sororidade, é empoderamento. E empoderamento assusta.

Enquanto mulheres somos socializadas para a competição. Um dos maiores êxitos do machismo patriarcal é a falsa noção ensinada e internalizada por cada uma de nós de que somos concorrentes. Aprendemos que mulheres não são amigas, que mulheres são desleais, que mulheres fofocam, mentem, passam a perna e roubam os homens umas das outras. A ausência de mulheres em espaços, postos de trabalho, níveis hierárquicos significativos ainda reforça outra noção: “Não tem espaços para todas nós!” E nós mulheres negras sentimos isso de maneira muito mais intensa, porque nossa ausência é muito maior, sendo assim, se já crescemos aprendendo a nos detestar na vida adulta não é raro que também comecemos a nos boicotar, porque temos a certeza (as vezes consciente, as vezes não) de que somente uma, no máximo duas de nós poderão estar ali.

Diante disso, o que pensaria uma sociedade racista e machista quando um grupo de mulheres negras, subverte essa lógica e transforma o espaço virtual antes utilizado apenas para pesquisas, leituras, vídeos, conversas-para-matar-tempo numa espécie de lugar de conforto, o lugar em que nos constituímos e nos reconhecemos enquanto amigas e irmãs

Não tardou para que começássemos a ser ridicularizadas, a ser nomeadas de radicais, de insanas, que era tudo um “complexo de inferioridade”. Muitas de nós passamos a ser ridicularizadas pelas costas em nossos locais de trabalho, nos apelidavam de intelectuais (porque é tão difícil para o racismo reconhecer a nossa potencialidade, que chamar uma mulher negra de intelectual só pode ser uma piada), tentavam fazer escárnio de nossos escritos e leituras da realidade chamando-nos de  sofisticadas que querem assistir sessão de arte… porquê sim é verdade:  uma presença negra empoderada incomoda muito, porque desconstrói todas as certezas que a branquitude opera a nosso respeito, subverte o padrão e desequilibra o jogo e por isso deve ser silenciada e apagada.

A má notícia para quem se incomoda com esse empoderamento é que esses grupos estão cada vez maiores, juntas estamos milhares de mulheres negras tomando de volta o poder de controlar as nossas vidas, juntas estamos resistindo Às violências, juntas estamos afirmando que não aceitamos mais a medida do “pelo menos”. Juntas queremos e seremos sempre mais.

Tenho que dizer que esse espaço é nosso novo Quilombo. Nossas madrugadas ainda serão muito mais produtivas e ainda que atualmente, durante o dia muitas já estão ali fazendo girar no espaço virtual o concreto enfrentamento as violências.

E sendo assim, notívaga como sou, vou fazer uma xícara de chá e esperar as irmãs para trocar uma ideia, despeço-me por hora e : bom dia para quem é de bom dia, boa noite para quem é de boa noite e sigamos incomodando. Porquê uma mulher negra empoderada incomoda muita gente, quando elas se juntam incomodam , incomodam, incomodam muito mais…

 

8 comments
  1. Qual o nome do grupo? Preciso compartir minhas experiencias. Sou empoderada há uns 15 anos e não foi fácil cada conquista, gostaria de participar deste e de outros grupo no mesmo foco.

  2. Que texto maravilhoso,continuem produzindo mais e incomodando muita gente,não podemos nos calar diante das situações que vivemos no dia a dia.

  3. Viviana Santiago, que texto perfeito. Nossa vou colocar como destaque numa página que ajudo a administrar, a gente precisa incomodar mais, ainda está pouco. Por nossas ancestrais. Gratidão por você existir com esta escrita empoderadora e com acolhimento de nossas dores silenciadas. Gostaria de dizer que te amo por isso. Posso? Muita luz, vida longa para que possamos te escutar muito. Todo o poder de ser você.

  4. No meu caso, sempre ouvi coisas como “você é muito exigente” e/ou “precisa relaxar mais”. Talvez isso expressasse uma real preocupação de algumas pessoas com minha saúde. Mas, na maior parte das vezes, a preocupação parecia estar atrelada com o tamanho da minha ambição de ter uma carreira acadêmica com direito a tudo que qualquer pessoa branca teria. E eu sempre soube que precisava me esforçar mais que xs colegas para chegar lá. Ouvi isso, mesmo tendo o “privilégio” de ser parda com poucos traços negroides, porque numa sociedade racista isto é – infelizmente – um privilégio. Mas sempre uma “estranha no ninho” de lugares feitos para brancos ocuparem.

    1. Olá Maria Camila Florêncio, sei exatamente o que é isso que vc passa, quando pendem para “relaxarmos” nos podando, traduziu o que passo há anos, quando não nos chamam de extremistas por escutar a nossa intuição. Estou seguindo meu poder interior, caso contrário nos matam física e psiquicamente. Asè!

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