Por Anna Preta para as Blogueiras Negras
O culto às divindades – inquices e orixás – é praticado no Brasil desde que os primeiros negros expatriados desembarcaram, ainda no século XVI. Mesmo depois de centenas de anos, os resquícios do passado escravocrata (carregado de racismo, perversidade e violência) permeiam a sociedade brasileira. No triste contexto do preconceito e da desinformação, nota-se que os males da intolerância atacam também as religiões de matriz africana. Entrevistei a escritora Vera de Oxaguiã que, junto com o Odé Kileuy, assina várias obras sobre o candomblé. Em seus livros, eles esclarecem algumas informações sobre a religião e propõem reflexões acerca da liberdade do culto e do respeito às diversas crenças.
É necessário o entendimento e a compreensão de que o candomblé não é uma “seita”. A seita caracteriza-se como uma facção minoritária das crenças predominantes assimilando simbolismos, liturgias, conceitos e dogmas de outras religiões variadas. O termo religião advém da ideia de re-atar e re-ligar o homem a seu Deus. No candomblé não existe a adoção desta função, porque nunca nos separamos de nosso Deus e de nossas divindades! O sentido de religião, dentro do candomblé, é o da confraternização geral – Trecho de “O candomblé bem explicado”
A cultura afro-brasileira (ou seja, as manifestações culturais do Brasil que incorporaram as influências dos ancestrais africanos) está fortemente associada aos elementos das religiões de matriz africana. Essa importante contribuição se destaca em variados âmbitos: os alimentos que são oferendas e também são parte das tradições culinárias; os instrumentos musicais que são utilizados nos rituais e se expandiram para a música brasileira; as roupas e acessórios também popularizados, entre outros elementos. Vera explica essa simbiose entre religião e cultura:
O Africano trouxe com ele a sua religiosidade e também suas diferentes culturas. Foi uma contribuição que floresceu, sofreu várias influências e que saiu dos recônditos dos terreiros e espalhou-se. Muitos alimentos passaram a fazer parte da culinária brasileira, que os aprecia. Porém, esses mesmos alimentos quando ofertados às divindades são preparados com pequenas variações, com mais cuidado, com um certo resguardo, com esmero e capricho especiais. Algumas comidas são sagradas, são de fundamento, e de uso exclusivo das divindades. Até mesmo seu nome e preparo são segredo para o leigo e para os novos adeptos. Os instrumentos musicais do candomblé são preparados com rituais e usados somente no toque para as divindades. Com o passar do tempo, alguns desses instrumentos passaram a contribuir para a musicalidade do nosso povo. As roupas usadas nos candomblés na sua grande maioria não vieram da África. No passado, as senhoras dos engenhos doavam às suas escravas as saias rodadas que não mais queriam. As negras escravas as usavam nos dias de festa e, assim, a baiana e as batas passaram a fazer parte da religião.
Apesar da escravidão ter sido um violento mecanismo de descaracterização e atraso cultural e social, a força da identidade afro-descendente (e afro-brasileira) se manifesta também nessas expressões culturais. Quando questionada acerca do uso dos elementos religiosos fora dos terreiros, Vera o avalia como positivo. Ela explica que a divulgação e uso das comidas, instrumentos, vestuário e expressões verbais não prejudica sua importância e valor nos ritos religiosos:
Creio que a divulgação desses elementos não descaracteriza a religião, pois o que é segredo, o que é sagrado, está preservado. Já se passaram mais de 400 anos e tudo que está à mostra foi trazido pelos nossos ancestrais e bem assimilado no Brasil.
Os relatos históricos apontam muitas perseguições aos terreiros e aos praticantes de Umbanda e Candomblé. Recentemente, foram noticiadas duas invasões a terreiros em Manaus e Olinda, que comprovam que os atos de intolerância religiosa ainda acontecem.
Alvo de perseguições policiais e religiosas, as casas de candomblé, no passado, eram invadidas, tendo seus objetos sagrados quebrados e, às vezes, até apreendidos. Vários terreiros eram fechados, babalorixás e iyalorixás levados presos. Era uma religião que muitos denominavam de “seita demoníaca”, devido à perseguição que lhe fazia a Igreja Católica que se valia de seu poder para também obrigar os negros a serem catequizados, no intuito de afastá-los de sua religião. (…) Mas a grande vitória do negro foi ter conseguido, à custa de muito sofrimento, o direito do livre arbítrio e o poder de escolher a sua religião. – Trecho de “O candomblé bem explicado”
Vera atribui a violência contra os terreiros ao preconceito racial, sócio-econômico e religioso e destaca a importância da luta pelo respeito. E reforça que a Constituição de 1988 declara inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando “o livre exercício dos cultos religiosos” e “a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”:
Nós, adeptos do candomblé, não devemos permitir, e nem aceitar, que desfaçam ou que denigram a nossa religião. Precisamos, sim, nos unir e reivindicar que nossos direitos sejam respeitados. O candomblé é talvez uma das religiões mais antigas da face da Terra, segundo os grandes estudiosos. Hoje, não precisamos mais nos esconder, e nem nos escudar por trás de outras religiões. No passado, sem a garantia das leis para protegê-los, nossos babalorixás e ialorixás eram vítimas de agressões e intolerância. E isso foi passando de geração para geração. Agora, não! Chega! Atualmente, estamos escudados pela Constituição, temos leis que nos protegem, temos liberdade!
Em seus livros, os autores defendem que o candomblé seja “reconhecido unicamente como uma religião”. Para reforçar seu argumento, Vera chama os candomblecistas a lutarem pelos seus direitos de liberdade religiosa e pela crença que nutrem. Ela afirmando que sua união e sabedoria religiosa podem ser uma força para combater o preconceito e propagar a crença.
Vera atribui a violência contra os terreiros ao preconceito racial, sócio-econômico e religioso e destaca a importância da luta pelo respeito. E reforça que a Constituição de 1988 declara inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando “o livre exercício dos cultos religiosos” e “a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”:
Nós, adeptos do candomblé, não devemos permitir, e nem aceitar, que desfaçam ou que denigram a nossa religião. Precisamos, sim, nos unir e reivindicar que nossos direitos sejam respeitados. O candomblé é talvez uma das religiões mais antigas da face da Terra, segundo os grandes estudiosos. Hoje, não precisamos mais nos esconder, e nem nos escudar por trás de outras religiões. No passado, sem a garantia das leis para protegê-los, nossos babalorixás e ialorixás eram vítimas de agressões e intolerância. E isso foi passando de geração para geração. Agora, não! Chega! Atualmente, estamos escudados pela Constituição, temos leis que nos protegem, temos liberdade!
Em seus livros, os autores defendem que o candomblé seja “reconhecido unicamente como uma religião”. Para reforçar seu argumento, Vera chama os candomblecistas a lutarem pelos seus direitos de liberdade religiosa e pela crença que nutrem. Ela afirmando que sua união e sabedoria religiosa podem ser uma força para combater o preconceito e propagar a crença.
O sincretismo, no passado, ajudou para que a religião pudesse ter continuidade ao permitir que ela se estabelecesse. (…) O candomblé precisa levantar a bandeira do anti-sincretismo. Esta não é uma luta somente dos brasileiros, é de todo um continente que se viu invadido e vilipendiado em seus direitos de praticar e escolher livremente a sua religião. Por meio do sincretismo, as raízes culturais e religiosas são renegadas, os segredos fundamentais são violados e os conhecimentos armazenados durante séculos são ignorados! A ancestralidade, os valores e a autoestima dos africanos tornaram-se reduzidas com o sincretismo! – Trecho de “O candomblé bem explicado”
Vera reforça esse posicionamento e explica como o cotidiano da prática religiosa independe dos elementos sincréticos. Apesar de respeitar a crença de quem já assimilou a relação das divindades africanas com os santos católicos, ela expõe argumentos em defesa da cultura e da liberdade.
Na nossa casa de candomblé não convivemos com praticamente nenhum sincretismo. Não celebramos mais nenhuma data ou cerimônia relacionada aos santos da religião cristã. Num passado distante o sincretismo foi muito necessário, ajudou até mesmo a religião a ter resistência, e chegar firme aos dias de hoje. Mas, atualmente, com a liberdade que temos, não precisamos mais andar atrelados em outra religião. Respeitamos quem assim age, mas achamos que este é o momento de todos repensarem o que o sincretismo traz de negativo para o candomblé. Estamos em pleno século XXI, a opressão já acabou! Existe, inclusive, um grupo de grandes iyalorixás que também lutam contra o sincretismo e a favor das nossas divindades, e a quem devemos agradecer a iniciativa. Se os candomblecistas ou umbandistas gostam de freqüentar outros segmentos religiosos, que o façam. Somos brasileiros e, como tal, alguns agem como diz o ditado popular: “de manhã vai à missa; à tarde vai ao pastor; e, à noite, bate tambor!”. Que cada um siga o seu coração, mas não vamos deixar que nos ponham novamente os grilhões, e nos persigam, condenando nossas divindades ao ostracismo, a viver camufladas. Já sabemos andar por conta própria!
A sociedade costuma tratar os elementos do candomblé e da umbanda com preconceito, quando, por exemplo, chama os praticantes da religião de “macumbeiros” ou “possuídos” e associa Exu ao demônio cristão. Ao tratar da cruel distorção das informações acerca das religiões afro-brasileiras, Vera é taxativa. Ela cita o real significado da palavra “macumba” – um instrumento musical e, portanto, a palavra que designa o som e a dança a ele relacionados – que serve de exemplo da preconceituosa e reprovável resignificação dos termos africanos.
Tratamos com repúdio e indignação tudo que macula o candomblé. A palavra “macumbeiro” nos é atribuída com uma conotação pejorativa, para nos machucar. Macumbeiro é uma palavra de origem bantu, com várias designações, mas a melhor apropriada é a sua relação com a dança, o som, a música. Sendo assim, é melhor olhar positivamente, porque somos dançarinos, vivemos felizes com a musicalidade.Todos, umbandistas e candomblecistas, e os seguidores de outros segmentos religiosos, precisam entender que em todas as religiões de matriz africana NÃO SE CULTUA SATANISMO. O diabo, o dito demônio, Satanás, seja lá o nome que lhe dêem, pertence a outras religiões. Ele representa uma força negativa que só age para aterrorizar, para amedrontar e assediar os fracos. O Nosso Exu é o “senhor do movimento”, do dinamismo, é quem cuida de nossos caminhos, de nossas encruzilhadas. E não pode ser associado ou assemelhado a uma “força” que só lida com o mal, com o que é ruim. Nosso Exu assemelha-se ao homem, não é bom e nem ruim, é tal como o ser humano, interesseiro. Não somos “possuídos” por Exu, ele é quem possui a força para nos guiar, nos ajudar.
Ainda sobre os preconceituosos julgamentos da sociedade, Vera discorre sobre a maneira que a casa de camdomblé, também chamada de “casa-de-santo”, “Axé” ou “terreiro”, é retratada pelos que desconhecem sua importância. Assim como os templos das diversas outras religiões, o terreiro é um ambiente que transmite paz e aconchego.
As pessoas que chegam à maioria das casas de candomblé não vêem nada que assuste, ou que transgrida as leis da religião e da sociedade. Não temos imagens, comidas mal-cheirosas pelos cantos dos barracões ou do terreiro, lixo espalhado. Geralmente, os terreiros de candomblé são ambientes de extrema limpeza, perfumados, acolhedores. São locais que trazem paz, que permitem a meditação ou somente o “observar”. Nossa religião é uma religião de alegria. Nela temos muito trabalho, sim, mas temos também muita comida, muita bebida, muita música, cor, sabores e perfumes. E o amor dos nossos orixás, voduns e inquices! Os candomblecistas e os umbandistas precisam obter melhores informações para que, através da Lei, repudiem agressões e denominações que, muitas vezes, são usadas para achincalhar as pessoas e a sua religião.
Diante de todas essas informações, é inegável o valor das religiões afro-brasileiras para a identidade do povo brasileiro e, sobretudo, do negro brasileiro. Para finalizar as reflexões acerca desse assunto, fica uma frase dita pela própria Vera de Oxaguiã.
Não somos contra nenhuma religião, só desejamos ser respeitados, assim como as respeitamos.