Ela nascera preta, da cor do azeviche e da jabuticaba, conforme diz antiga canção muito popular. Seu cabelo é a parte mais intrigante deste biotipo singular que ajuda a caracterizar mulheres com tal tom de pele. O repertório de significados que classifica negativamente as pessoas que não são aceitas como são, apelidaram-no de pixaim, palha de aço, bombril, duro, ruim, seco, sem vida, cabelo difícil de ser dominado. Pente? Parecia inexistir um que desce conta de tamanho emaranhado.
Nenhuma canção o enaltecia. Nenhum poeta perdia tempo em lhe dedicar versos elogiosos por sua beleza natural. Quando atingiu a idade das inquietações infantis, numa tarde, logo após o banho, quando chegou o momento de pentear os cabelos perguntou à avó:
— Vovó por que meu cabelo é assim?
Porque Olorum, deus do universo, criou cada gente de um jeito. Na África, de onde todos os pretos vieram, o sol nunca descansa do seu ofício de esquentar, então Olorum colocou na gente este tipo de cabelo e esta cor de pele que servem para nos proteger dos raios vibrantes que aquecem aquela parte da terra. O deus maior encarregou o sol de abrilhantar nossas ideias sem queimar nossos miolos, explicou a avó Maria Rita.
Ela nascera preta e trazia nela uma tonalidade de cor de causar inveja a uma reunião de arco iris, num céu sem fim. Com a avó, aprendeu as lições básicas para enfrentar a discriminação que cruzaria, inexorável, o caminho de sua vida por causa da pele tão nítida durante o dia e fundida com a noite de noite, em perfeita harmonia com a natureza.
A primeira lição que recebeu da avó retinta foi a gostar de si e transformar a diferença em vantagem. Entender que fazemos parte de um universo formado por seres de muitas espécies que se aqui estão é porque são necessárias para o equilíbrio do universo.
Para acostumar-se com o cabelo, a avó tinha soluções aprendidas com a mãe, ex-escravizada cuja a histórica condição inviabilizava cuidados mais elaborados um cabelo tão delicado. Para a avó, combater o estigma do cabelo indomável era o primeiro passo à auto aceitação. Quando o amor por si mesmo chega, a pessoa se reconhece e passa a aceitar seu corpo e seu cabelo. É a libertação do desejo da beleza europeia eternamente vista como padrão, júbilo para as mulheres brancas e um castigo para as negras.
Ela nascera preta da cor da verdade, por isto, sua palavra mágica era superação. A avó foi seu braço esquerdo e direito nesta busca. Ela lhe ensinou a ficar de cabeça erguida quando o mundo a quer cabisbaixa.
Aquela mineira retinta, com quem a menina ia aprendendo a ter coragem e orgulho de estar presente na vida, tratou do cabelo da neta como se cuida de um talismã. Emprestou-lhe maciez e suavidade. Para amaciá-lo e ajudá-lo a crescer ela utilizava artifícios possíveis, que custavam pouco dinheiro que, como sempre, circula com escassez na comunidade negra.
O feijão da casa da avó era gordo. Temperado com muita cebola, alho, louro e toucinho de porco. A avó colocava no caldeirão, uma quantidade de toucinho para o tempero do feijão e outra para a realização de uma pasta para o cabelo. Ela retirava a gordura do toucinho e após esfregá-la nas mãos molhadas em água aplicava no cabelo da neta em movimentos circulares e firmes, numa massagem vigorosa.
Depois o dividia em vários rolinhos e prendia com grampos. Após soltar um a um os rolinhos ia penteando, punhadinho por punhadinho de cabelo com leveza, sem puxá-lo, sem causar sofrimento. Então soltava todo o cabelo e o embebia com perfume feito com rosas, álcool e água. A mistura ficava curtindo, dentro de um vaso de barro, por três noites de lua cheia. Pronto, o aroma rescendia gostoso na cabeça, à espera do acerto final. Agora o cabelo estava possível, qualquer penteado caia bem. A avó preferia reparti-lo e fazer duas tranças que terminavam na altura dos ombros, com dois laços de fitas coloridas.
O ritual era demorado, mas o cabelo do preto é determinado e obediente. Ao contrário do que se pensa, ele permanece na posição em que é colocado. É fácil mantê-lo alinhado. É questão de acostumar-se com ele, amá-lo e senti-lo parte integrante de seu ser. Assim, as tranças arquitetadas duravam uma semana. Toda a segunda-feira a operação era repetida.
Apesar de todos os afazeres delegados à avó que cuidava da neta, do neto e do filho doente, a menina jamais ouvira uma reclamação pela obrigação. Jamais uma cara feia, um suspiro de cansaço, um deixar para amanhã, um tremor nas mãos. Jamais. Nunca a avó pensou em passar a tesoura nos cabelos e deixá-los bem rente ao couro cabeludo ou fritá-los em alisamentos traumáticos, feitos com pentes de ferro, esquentados no fogo. Muitas mães, manipuladas pelo ideal de beleza vigente utilizavam o meio, descaracterizando as meninas pretas desde cedo, colaborando com vo processo de aculturação e desgosto de sua condição.
Cortar os cabelos encaracolados ou torná-los lisos somente para tentar apagar traços da raça é desejar ser o outro sendo o que se é. Talvez um desejo realizável em sonho, mas do sonho sempre se acorda, ai a realidade impõe-se soberana, muitas vezes cruel. Com a avó preta, a menina ia aprendendo a não temer a si mesma, que a beleza está em todas as pessoas que se gostam. Com ela, a menina aprendeu que também poderia ser filha do Deus que jamais ninguém viu a cor, mas que afirmam ser branco e amar todas as pessoas independentes da cor.
Com a avó preta, ela aprendeu a admirar seu nariz chato, os lábios carnudos, as pernas grossas e a bunda saliente. Aprendeu que não era pecado ser uma menina preta bonita. O valioso presente da autoestima não veio dos livros, dos professores, dos amigos, da igreja, veio de uma preta que não sabia ler nem escrever, mas que entendia muito de humanidade, amor e compreensão. Em sua visão, todos se tornam iguais ao respeitar as diferenças.
Maria Rita foi a mulher que a menina mais amou na vida. Que novidade existe nisto, se é comum nas avós a bondade? Mas esta era mais que avó. Era como se a mãe tivesse ressuscitado da morte precoce, pois ela tinha partido aos vinte anos, deixando a filha com três. A avó preta não permitiu que a dor da perda criasse raiz no peito infantil. Cobriu os órfãos maternos com amor. Foi amiga, professora, benzedeira. Tinha o remédio certo para as doenças do corpo e do espírito. Sabia orações que protegiam a menina dos perigos. Ela sempre dizia:
— Menina escreva minhas rezas num papel e guarde. Elas servirão na hora do aperto. Mas a menina preta como a jabuticaba era distraída e sempre deixava para depois. Hoje ela se arrepende por não ter guardado tamanha relíquia, ajudaria a amenizar algumas mazelas.
Maria Rita era uma preta alta, magra, de cabelos ralos e macios. Usava-os repartidos do lado. Na altura da nuca, os prendia com uma fileira de grampos. Para cozinhar, amarrava um lenço na cabeça evitando que, um fio teimoso caísse em sua suas panelas sempre exalando um cheiro de comida bem temperada, que dava vontade de comer mesmo já se estando alimentado. Exímia cozinheira fazia macarrão em casa, em uma velha maquininha de moer carne e cocadas inesquecíveis que distribuía às crianças da vizinhança.
Vaidosa, estava sempre limpa e arrumada. Os vestidos de tecidos baratos ou de imitação de seda eram costurados cuidadosamente à mão, ela não tinha máquina de costura. Com o tempo e a vida melhorando comprou uma máquina de costura portátil e passou a fazer roupa também para a neta.
A avó da menina preta tinha um defeito no dedo anelar da mão direita provocado por um corte profundo de uma faca, quando limpava galinha. Por pouco o dedo não foi decepado. Tratado com uma infusão feita de folhas de fumo e mentruz, o ferimento sarou, mas nunca mais ela conseguiu esticá-lo. O acidente não impediu que continuasse a fazer todos os trabalhos de casa e ainda dar uma palavra de apoio a todos que a procurassem em busca de conselhos, comida e até dinheiro emprestado. Era comum ela dividir o pouco que tinha com as pessoas. Fez muitos amigos.
À crença nos orixás veio somar-se a fé católica. Virou, também, católica fervorosa. Em São Paulo, para onde partiu deixando a cidade de Muzambinho, em busca de uma vida menos sacrificada fez parte, até a morte, da Irmandade Sagrado Coração de Jesus. A menina lembra-se dela portando um vestido sério, azul- marinho, de mangas compridas, véu preto na cabeça e a fita da irmandade, com o retrato do Cristo de coração exposto. Assim trajada ia às missas dominicais, levando os netos ainda pequenos.
À noite, tirava umas horinhas para si. Após os afazeres da casa, debruçava pensativa no parapeito da janela do quarto, fumando cachimbo, os olhos distantes. Entre uma bafora e outra, no silêncio, pensava num não sei o quê. Gostava de dançar o lundu, lembrança sonora de uma África que nunca conheceu, mas que trazia guardada na existência. Era quando nas rodas de dança, ouvia-se sua voz repetir uma cantiga que dizia assim: “cataretê, cateretê que eu gostava de dançar em noites de brincadeira iluminada de luá”.
Nas procissões dos santos católicos, a qual não faltava, cantava a todo pulmões com sua voz estranha, estridente, trêmula. Alguns acompanhantes tapavam a boca, tentando esconder o riso. Imaginando que a avó pudesse perceber e ficar magoada, a menina pensava em pedir a ela para cantar baixinho. A menina preta logo percebia que o pedido era inútil, aquela mulher tinha tutano e jamais deixaria de fazer o que acreditava por causa dos outros. Então desistia e seguia segurando com mais força a mão áspera da avó.
Lembra-se de todas as batalhas que a avó enfrentou durante a vida. A mais difícil de todas foi a de cuidar do filho doente. Ela foi mãe de 13 filhos, onze morreram. A maioria pelo excesso de dificuldade trazido pela pobreza. Dos filhos que restaram, o mais velho pegou tuberculose aos 27 anos. Durante muitos anos ele trabalhou num frigorífico transportando nas costas, peças congeladas de carnes para distribuir nos açougues da cidade. Foi seu primeiro emprego em São Paulo. A friagem era constante e as roupas de proteção insuficientes. Deste trabalho, ficou uma pneumonia que evoluiu para tuberculose que detonou sua saúde.
Com frequência, a menina via a avó correndo até o banheiro com um pequeno urinol com muito sangue expelido pelo filho, nos momentos em que as tosses pareciam estourar os pulmões, provocando a hemoptise. A fraqueza era grande após a crise, então chegava o momento em que a velha senhora corria paro o fogão a fim de preparar os alimentos que prolongariam por mais algum tempo a vida que se esvaia. Era a hora das sopas de fubá com cambuquira, dos caldos, dos mingaus de aveia e mel, dos xaropes de agrião, das canjas de galinha caipira, das gemadas com vinho e canela. E, principalmente, a hora de sufocar a dor e confortar o filho.
Para que as crianças da casa não fossem contaminadas pela tuberculose, os médicos recomendaram que tomassem, durante um ano, uma vez por mês, uma dose do BCG, remédio que evitaria o possível contágio. Coube à avó andar mais de uma hora, todos os meses, com as duas crianças até o hospital Clemente Ferreira, na Consolação, em São Paulo, para que tomassem a droga preventiva.
Seria difícil dizer qual das cinco casas em morou com a avó era a mais agradável. Todas tiveram seu encanto, momentos especiais. Não eram as casas que estavam cheias de qualidades, era a mulher boa e simples que a conduzia, com felicidade preocupada em dissipar mágoas contidas.
Tinha uma destas casas que a memória da menina preta, feito jabuticaba, relutava em apagar. Era a de uma casa grande, com quartos arejados e camas cobertas com colchas de retalhos coloridos. As janelas ornadas com cortinas de algodão branco, feitas pelas mãos incansáveis. A sala de visitas era simples. Nela, apenas uma mesa de jantar retangular, de aproximadamente 3 metros, onde descansava um vaso feito de barro, repleto de hortênsias, colhidas no jardim de muitas flores. Um rádio sempre ligado, em músicas brasileiras, e uma prateleira onde era guardada a maioria das louças herdadas da nora morta, fechavam o ambiente. Impossível se esquecer da cozinha, com um enorme fogão a carvão cuja fumaça deixava a parede escura que só recebia uma mão de cal na época da festa de Natal.
O melhor daquele lugar, que ajudou a completar as delícias da infância, era o quintal onde a bananeira, a jabuticabeira, laranjeira, o pé de lima, o abacateiro, a ameixeira davam a impressão que o paraíso, se é que existe, tinha se mudado do céu para a terra. Era ali que passava a maior parte de seu dia. Ora brincando de balanço, pendurado no tronco robusto da laranjeira ora saboreando o vinho-mentira feito de amoras carnudas, colhidas fresquinhas. Às sombras das árvores também serviam para longos bate- papos com as bonecas que terminavam num sonho tranquilo, embaixo da brisa serena, devido a faltas de respostas das mesmas.
A menina preta da cor do azeviche jamais esquecerá o que a avó representou na sua formação de mulher. Quando ela aprendeu a gostar de seu cabelo pixaim descobriu que barreiras podem ser quebradas. A morte da avó é apenas uma distância temporária na vida eternizada das duas mulheres de pele preta.