Demorei mais ou menos 25 anos para descobrir que era negra.
Minha mãe é uma mistura de negro, índio e branco, e meu pai o resultado de espanhóis, portugueses e negros. Minha mãe tem a pele negra, meu pai a tem branca. E eu sou a famosa brasileira, filha da miscigenação.
Até meus 20 anos, eu nunca havia pensado na questão. Até que um belo dia, um amigo de um garoto com quem eu tive um casinho me disse que era estranho “um loiro com uma negra”. E completou “sou racista mesmo. É minha opinião”.
Esta foi a primeira vez que eu percebi o racismo. E depois disso, levei alguns anos ainda para conseguir aceitá-lo, porque ele dói. Muito. O racismo é praticado todos os dias para dizer aos negros o quanto aquele corpo é errado, deslocado. Afinal, o belo, o normal, o harmônico, é a branquitude. E nós, negros, precisamos compensar esse corpo incômodo, essa nossa presença no mundo, tentando ser brancos. Nos casando com pessoas brancas, tendo filhos mais claros. O racismo assegura a violência contra o corpo negro.
Depois da dor, vieram as questões. Afinal, a verdade não é uma entidade suprema. Ela tem uma história vinculada às praticas sociais, às relações de poder, ao conhecimento e à memória dos sujeitos de determinado momento histórico. A verdade reproduz uma ideologia.
Se a verdade não é estática e, de acordo com as tensões sociais, ela pode se transformar, eu optei por fazer parte do grupo que cria a tensão. Se todos os negros resolverem negar a ideologia vigente, a verdade certamente será modificada e ninguém, nunca mais, terá de ouvir um “tudo bem eu ser racista, é minha opinião”. Essa pessoa contribui para perpetuar as relações de dominação. Mas, para isso, o dominado precisa estar neste jogo. Escolho não me submeter.
O corpo negro é de luta, historicamente. Ele não apenas existe nos espaços, ele precisa impor sua presença, para romper com a ideia do branqueamento. A mulher negra, além de sofrer com a objetificação de seu corpo, própria do machismo estrutural, ainda precisa lidar com os ideais de beleza vigentes e, muitas vezes, ela nega o próprio corpo por meio de processos artificiais, na esperança de “amortecer” a dor.
Se a minha experiência pessoal vale alguma coisa, posso dizer seguramente ter descoberto, depois de tirar muitas pedras do caminho, que a minha força, a minha autoestima e a minha liberdade residem no meu corpo. No tom da minha pele, na forma do meu cabelo e dos meus traços. Deixei de sofrer depois de ter prometido a mim mesma nunca mais pensar em alisar os cachos. Nunca mais deixar ninguém me chamar de “moreninha”, porque negro não é xingamento, nem pretensiosamente me elogiar dizendo que eu tenho “traços delicados”.
Entristeço-me a cada vez que vejo cabelos alisados, corpos curvados e olhares fundos, como se fossem sombras tentando se encaixar na realidade. Amigas, vocês não precisam se engajar em passeatas. A gente faz política na fala, na postura. Parem de alisar seus cabelos, de se esconder atrás de códigos de conduta que apenas te violentam. Os outros, os que acreditam na verdade como uma entidade, querem ver vocês fracas e submetê-las ao controle de uma sociedade doente. Eles não querem que você enxergue a força da sua negritude.
Resista, sempre.