A história que conto poderia ser um conto de todas nós

Fui resgatada, minha ancestralidade me segurou pela mão e reconduziu-me de volta pra casa. Assim como uma mãe zelosa faz ao encontrar sua filha que estava perdida, minha ancestralidade veio apressadamente ao meu encontro, não sobrou tempo pra perguntar o porquê de tudo aquilo. Todo conhecimento que era necessário para o meu resgate veio como uma onda gigantesca, eu segui em frente, banhada pela história do meu povo, inundada pelos acontecimentos que culminaram com a minha existência assim como sou, tanto por dentro quanto por fora.

Após fazer minha última escova progressiva no ano de 2013, tive uma sensação estranha de desconexão com a minha imagem, aquela aparência agora era para mim como um reflexo distorcido de um padrão de beleza que eu jamais atingiria, e não houve como não me questionar sobre a importância daquele esforço desesperado para parecer de determinado jeito, aliado a isso, comecei a ser questionada com certa frequência sobre como era o meu cabelo natural, a princípio eu respondia que era bastante cacheado e armado, porém, à medida que precisei responder a essa pergunta outras vezes, percebi com o tempo, que dava respostas diferentes a cada indagação, isso começou a me incomodar… Não lembrava mais como era meu cabelo natural, essa era a verdade, não lembrava como era a moldura do meu rosto após anos de alisamentos que começaram ainda na infância, era o resultado de toda uma vida em contato com familiares racistas, mulheres que não se reconheciam bonitas com suas características negras, estudando em escolas racistas, ouvindo frases racistas, assistindo programas e filmes racistas, tendo que me submeter a trabalhos em posições historicamente marcadas pelo racismo; relacionando-me com homens racistas, condicionada à convivência com seus familiares racistas, muitas vezes negros, que me jogavam na cara de variadas formas que eu precisava me esmerar em adequar a minha aparência às suas exigências, para quem sabe um dia poder ser merecedora de um pouco de atenção. Sem perceber internalizei tudo.

Apesar de parecer na maioria das vezes uma pessoa centrada e sem grandes problemas de autoestima, percebi que carreguei diversos estigmas de ser mulher negra, a necessidade constante de ser forte, de aguentar tudo de todos, de servir e calar em prol de um bem maior para uma coletividade, o que geralmente vinha acompanhado de mágoa e de um silêncio sempre muito doído. No entanto, nem sempre me calei, às vezes não conseguia ser tão resiliente, tive momentos de agressividade, de medo de um dia ficar louca, de não suportar o peso daqueles à minha volta.

Após um período de muita culpa e choro por ter reproduzido o racismo tanto no meu corpo, quanto na minha autoconfiança, repensei a conduta de toda uma vida, concluí que deveria ter muita compaixão por mim mesma, que merecia acolher-me de forma carinhosa e amorosa em meu próprio colo, pois estava perdida até então. O conhecimento da história do meu povo me salvou e libertou dos grilhões de concepções racistas, pesquisei textos acadêmicos, livros, sites, blogs e tudo que pudesse me empoderar  de conhecimento. Em pouco tempo, tomei a firme decisão de jamais mudar a textura dos meus cabelos ou de qualquer outro traço do meu corpo que me caracterizasse como mulher negra, tive a grata oportunidade de poder ministrar algumas palestras sobre igualdade racial e de sentir um imenso prazer em todo esse processo.

Hoje, depois da transição capilar, poderia me apresentar da seguinte forma: sou Suéria Dantas, fisioterapeuta, casada, mãe de dois meninos; o que mudou foi que deveria ter trinta e quatro anos, mas fui gestada e parida há dois anos atrás, quando passei a me reconhecer e ser feliz sendo tudo o que sou.

 

Imagem destacada: Black Beautiful Page

13 comments
  1. Luciana muito obrigada por compartilhar! Nos enxergamos umas nas outras, isso é o mais próximo de irmandade na minha opinião, cada olhar de uma mulher negra na rua parece dizer ‘eu te entendo’, amo isso em nós. Outro abraço!

  2. Obrigada Karla! Você tem toda razão quando diz que não é fácil, lutamos todos os dias em muitas frentes, mas temos resistido lindamente, e é muito gratificante poder se reencontrar! Beijos!

  3. Parabéns pra você também Jordana, é muito bom saber que muitas coisas que guardamos são também sentidas/vividas por outras mulheres. Boa sorte! Beijos!

  4. Suéria, parabéns pelo texto. Me identifiquei bastante, porque 2013 também foi a época em que deixei de alisar meus cabelos com as progressivas da vida e descobrir novamente meus cachos naturais. Depois disso me descobrir mulher negra e desde então a busca pela minha ancestralidade é o que me traz autoestima e força pra encarar as tantas patadas racistas que esperam por nós lá fora. Gratidão por passar para tantas outras mulheres negras a sua experiência. Um abraço!

  5. Ler assuntos assim, é extretamente gratificante. Super feliz ver que nossas lutas não são em vão! Passei ha pouco tempo por uma transição capilar, e isso me deixou super forte, porque me descobri verdadeiramente, e hoje, mais do que nunca, tenho um grupo Afro completamente voltado para a valorização da Cultura, e bem estar da mulher negra se chama (AFROCULTURE). Onde prezamos pela estética e ancestralidade de diversas formas. Não é fácil! e por este motivo, quando mais apoio, melhor. Super interessante compartilhar experiencias ♥ Lindo mesmo!

  6. Faz 7 meses que resolvi assumi meu cabelo, isso aconteceu logo após encontrar uma foto antiga quando ainda era menina e tinha cabelos claros e crespos, motivos de piadas . “Negra loira”, na época não era a textura dos fios mas a cor que me intrigava, com 15 anos passaram química nos meus cabelos, confesso que chorei, no entanto me habituei tanto ao novo visual que me perdi. Ao ver a foto antiga senti minha falta, já não lembrava mais como era o meu cabelo….resolvi me encontrar cortei , mas ainda há um pouquinho de química nas pontas, em março mês do meu aniversário farei meu big chop.
    Estou muito feliz por assumir minha identidade, olho no espelho e gosto do que vejo EU….!
    Faz um mês postei um vídeo no YouTube relatando minha decisão.

  7. Adorei, Estou na fase de me descobrir o processo começou pelo meu cabelo e agora vejo muita coisa que via mais ao mesmo tempo guardava para mim. Parabéns pela sua postura e pelas palavras! Bjs

  8. . Eu estou num momento de crise, em que pela primeira vez na vida, comecei a questionar o meu aplique capilar e a nao me reconhecer na minha aparência. É tempo de transição eu sei. Mas nao sei se estou pronta, e esse processo todo tem,sido bem doloroso. Post como esse ajudam muito!

    1. Juliana quanta força nas suas palavras, você demonstra ter as respostas que precisa, acredito ser como uma viagem de volta pra casa, no começo dá aquela ansiedade e até medo, mas depois vem aquela sensação reconfortante de pertencimento que faz a caminhada valer a pena. Muito grata por sua partilha e boa sorte.

  9. Texto lindo. Me identifiquei muito, pois só após ter o conhecimento através da internet, que decidi parar de alisar meu cabelo.. Fiz o BC há dois anos e desde então minha vida mudou muito… Sou mais feliz, e minha autoestima é outra.

    1. Muito obrigada Lohana Larissa! Para nós nunca será apenas sobre cabelos, é também sobre aprender a amarmos por tudo o que somos e mostrar que apesar de tudo temos resistido, isso faz toda a diferença.

  10. “concluí que deveria ter muita compaixão por mim mesma, que merecia acolher-me de forma carinhosa e amorosa em meu próprio colo, pois estava perdida até então.”

    Eu chorei.

  11. Que bonito, Sueria!
    é tão bom saber que não somos só nós que passamos por este turbilhão.
    Mas, é melhor ainda saber que temos sobrevivido e ainda mais fortes.

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