Por Jaqueline Gomes de Jesus para as Blogueiras Negras
Recentemente uma colega de trabalho nos contou uma história. A filha de uma conhecida dela era discriminada na escola por ter “cabelo ruim” (frase utilizada com convicção pela nossa narradora). A professora, em dado momento, interveio, trazendo a garota insultada para um canto isolado e lhe perguntando:
— Você se acha feia?
— Não… — retrucou a menina.
— Você é muito bonita, não acredite no que seus coleguinhas dizem.
Pois bem, imediatamente eu questionei a minha colega se a professora também tinha conversado com as demais crianças sobre o quão erradas elas estão em discriminar alguém. Ela disse que não, mas que iria conversar com a professora a respeito.
Justifiquei minha pergunta explicando que é comum, em situações de racismo e outras discriminações no ambiente escolar, que os profissionais silenciem ou responsabilizem apenas as vítimas pelo que acontece. A história se repete.
Lamentavelmente, na mesma semana, outro episódio. A conversa era sobre a filha de outra colega de trabalho que participava da Jornada Mundial da Juventude. A mãe mostrou uma foto da moça com parentes ao redor: branca de cabelos lisos e aloirados, cercada de pessoas evidentemente negras. Comentário da genitora orgulhosa:

— Vejam como minha filha é bonita, e olha que ela tinha cabelo bem encaracolado.
(Cabelos, mais uma vez. Marcadores de identidade feminina nesta sociedade, como sempre… e como sempre, nesta sociedade racista, remetem a bondade ou “ruindade” associada à identidade étnica…).
— Eu já tive cabelo assim! — intervém outra — agora estou bem melhor com este penteado (liso).
— Meu avô era negro. — ressalta a mãe — Dizem que temos de purificar a raça, não é mesmo? — imediatamente eu interrompo:
— Não! Purificar a raça? Que raça é impura e precisa ser purificada? De quê? Isso não existe, somente na cabeça de quem, como antigamente, sentia vergonha de ser negra ou afrodescendente, e aderia ao discurso oficial de que negro é feio e branco é bonito! Você ainda repete isso hoje? — As palavras “eugenia” e “fascismo” passavam pela minha mente.
Há uma mensagem, dentre tantas que ressoam nesses momentos deploráveis, a qual alimenta o sentimento de privação: a de que, não importa o grau ou natureza de sua ascensão socioeconômica, você será “posta no seu lugar”, aquele preparado para as pessoas negras na sociedade racista contemporânea, que enche a boca para fazer o discurso da diversidade, porém lhe joga migalhas, enquanto reserva os melhores postos aos poucos privilegiados.
Esse lugar é depreciado, estigmatizado, uma espécie de prisão na qual os muros nos impedem de usufruir d determinados espaços, de nos movimentar livremente, da qual não escapam nem mesmo os raros negros que conseguiram romper as barreiras da inferiorização no mercado de trabalho e no acesso ao ensino superior.
Que os movimentos de negras e negros brasileiros, os populares, os da linha antirracista e os de promoção da igualdade racial avancem para ações radicais (no sentido de irem à raiz do problema etnicorracial neste país). Não basta o sucesso em se apropriar dos elementos afro-brasileiros que constituem o núcleo da cultura brasileira, já passamos do tempo de subverter a lógica econômica que repele pessoas negras dos cargos de poder ou dos mais valorizados socialmente.
Mas como enfrentar toda essa estrutura, delineada ao longo de séculos? O Estatuto da Igualdade Racial trouxe algumas propostas generalistas, eficazes em diferentes campos da percepção social sobre a população negra. Além delas, as ações afirmativas, em particular as cotas para negros nos processos seletivos de instituições de ensino superior e nas seleções em órgãos públicos — as quais considero potencialmente transformadoras — podem subsidiar uma mudança de fato no funcionamento do nosso sistema de poder, porém devem ser acompanhadas cuidadosamente, para se evitar o mau gerenciamento e garantir a sua continuidade.
Enquanto isso é planejado, prossegue o silêncio organizado contra o racismo cotidiano, mas igualmente as lutas individuais contra a violação da identidade e das perspectivas de todas nós, pessoas negras. Que essa batalha passe a ser de todos os cidadãos brasileiros.
2 comments
O post me fez lembrar de um caso em sala de aula, em que a turma hostilizou um garoto que era gordinho. Eu dei esporro na sala, dizendo que o que eles estavam fazendo era errado, que eles não tinham o direito de fazer nenhum comentário sobre a aparência, raça, religião, ou orientação de ninguém. Todos devemos ser aceitos, temos que ser aceitos, as diferenças e os preconceitos precisam ser vencidos.
O representante da turma se desculpou e na saída conversei com o aluno em questão, que disse que ia esquecer o assunto.
Na sala dos professores eu comentei o assunto. E os professores mais velhos me repreenderam, porque aquele era um caso de “conversar separadamente com o aluno e não envolver a turma toda no ‘problema do gordinho’.”
=S
Oi, Sybylla! Muito importante o seu relato de resistência ao racismo no âmbito escolar!
Pois é, os mecanismos de repreensão e silenciamento sempre presentes… Não podemos nos calar mesmo. Grande abraço!