A prisão e seus muros

Que os movimentos de negras e negros brasileiros, os populares, os da linha antirracista e os de promoção da igualdade racial avancem para ações radicais (no sentido de irem à raiz do problema etnicorracial neste país). Não basta o sucesso em se apropriar dos elementos afro-brasileiros que constituem o núcleo da cultura brasileira, já passamos do tempo de subverter a lógica econômica que repele pessoas negras dos cargos de poder ou dos mais valorizados socialmente.

Por Jaqueline Gomes de Jesus para as Blogueiras Negras

Recentemente uma colega de trabalho nos contou uma história. A filha de uma conhecida dela era discriminada na escola por ter “cabelo ruim” (frase utilizada com convicção pela nossa narradora). A professora, em dado momento, interveio, trazendo a garota insultada para um canto isolado e lhe perguntando:

— Você se acha feia?
— Não… — retrucou a menina.
— Você é muito bonita, não acredite no que seus coleguinhas dizem.

Pois bem, imediatamente eu questionei a minha colega se a professora também tinha conversado com as demais crianças sobre o quão erradas elas estão em discriminar alguém. Ela disse que não, mas que iria conversar com a professora a respeito.

Justifiquei minha pergunta explicando que é comum, em situações de racismo e outras discriminações no ambiente escolar, que os profissionais silenciem ou responsabilizem apenas as vítimas pelo que acontece. A história se repete.

Lamentavelmente, na mesma semana, outro episódio. A conversa era sobre a filha de outra colega de trabalho que participava da Jornada Mundial da Juventude. A mãe mostrou uma foto da moça com parentes ao redor: branca de cabelos lisos e aloirados, cercada de pessoas evidentemente negras. Comentário da genitora orgulhosa:

Imagem Facebook Pretinhos Kids
Imagem Facebook Pretinhos Kids

— Vejam como minha filha é bonita, e olha que ela tinha cabelo bem encaracolado.
(Cabelos, mais uma vez. Marcadores de identidade feminina nesta sociedade, como sempre… e como sempre, nesta sociedade racista, remetem a bondade ou “ruindade” associada à identidade étnica…).
— Eu já tive cabelo assim! — intervém outra — agora estou bem melhor com este penteado (liso).
— Meu avô era negro. — ressalta a mãe — Dizem que temos de purificar a raça, não é mesmo? — imediatamente eu interrompo:
— Não! Purificar a raça? Que raça é impura e precisa ser purificada? De quê? Isso não existe, somente na cabeça de quem, como antigamente, sentia vergonha de ser negra ou afrodescendente, e aderia ao discurso oficial de que negro é feio e branco é bonito! Você ainda repete isso hoje? — As palavras “eugenia” e “fascismo” passavam pela minha mente.

Há uma mensagem, dentre tantas que ressoam nesses momentos deploráveis, a qual alimenta o sentimento de privação: a de que, não importa o grau ou natureza de sua ascensão socioeconômica, você será “posta no seu lugar”, aquele preparado para as pessoas negras na sociedade racista contemporânea, que enche a boca para fazer o discurso da diversidade, porém lhe joga migalhas, enquanto reserva os melhores postos aos poucos privilegiados.

Esse lugar é depreciado, estigmatizado, uma espécie de prisão na qual os muros nos impedem de usufruir d determinados espaços, de nos movimentar livremente, da qual não escapam nem mesmo os raros negros que conseguiram romper as barreiras da inferiorização no mercado de trabalho e no acesso ao ensino superior.

Que os movimentos de negras e negros brasileiros, os populares, os da linha antirracista e os de promoção da igualdade racial avancem para ações radicais (no sentido de irem à raiz do problema etnicorracial neste país). Não basta o sucesso em se apropriar dos elementos afro-brasileiros que constituem o núcleo da cultura brasileira, já passamos do tempo de subverter a lógica econômica que repele pessoas negras dos cargos de poder ou dos mais valorizados socialmente.

Mas como enfrentar toda essa estrutura, delineada ao longo de séculos? O Estatuto da Igualdade Racial trouxe algumas propostas generalistas, eficazes em diferentes campos da percepção social sobre a população negra. Além delas, as ações afirmativas, em particular as cotas para negros nos processos seletivos de instituições de ensino superior e nas seleções em órgãos públicos — as quais considero potencialmente transformadoras — podem subsidiar uma mudança de fato no funcionamento do nosso sistema de poder, porém devem ser acompanhadas cuidadosamente, para se evitar o mau gerenciamento e garantir a sua continuidade.

Enquanto isso é planejado, prossegue o silêncio organizado contra o racismo cotidiano, mas igualmente as lutas individuais contra a violação da identidade e das perspectivas de todas nós, pessoas negras. Que essa batalha passe a ser de todos os cidadãos brasileiros.

2 comments
  1. O post me fez lembrar de um caso em sala de aula, em que a turma hostilizou um garoto que era gordinho. Eu dei esporro na sala, dizendo que o que eles estavam fazendo era errado, que eles não tinham o direito de fazer nenhum comentário sobre a aparência, raça, religião, ou orientação de ninguém. Todos devemos ser aceitos, temos que ser aceitos, as diferenças e os preconceitos precisam ser vencidos.

    O representante da turma se desculpou e na saída conversei com o aluno em questão, que disse que ia esquecer o assunto.

    Na sala dos professores eu comentei o assunto. E os professores mais velhos me repreenderam, porque aquele era um caso de “conversar separadamente com o aluno e não envolver a turma toda no ‘problema do gordinho’.”

    =S

    1. Oi, Sybylla! Muito importante o seu relato de resistência ao racismo no âmbito escolar!
      Pois é, os mecanismos de repreensão e silenciamento sempre presentes… Não podemos nos calar mesmo. Grande abraço!

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