A síndrome de Cirilo e o ciclo de violência familiar

Meu pai sempre foi o tipo de negro que fingiu a vida toda que o racismo nada tinha a ver com a vida dele. Sempre negou sua raça e suas origens, o que para mim trouxe consequências terríveis uma vez que nunca me senti a vontade para dividir a dor de passar pelo racismo que eu passava na escola, por exemplo. Como todo negro q ue nega suas origens meu pai não poderia fazer diferente, escolheu uma mulher branca para se casar. As consequências desse ato, que decorreu da falta de orgulho de si mesmo que meu pai sentia, trouxe-me as piores consequências. A mulher que meu pai escolheu, minha mãe, além de ser branca é também racista. Com certeza alguém dirá: impossível! como uma branco racista pode se casar com um negr? A resposta a essa pegunta não é nenhum pouco simples, mas, no caso da minha mãe, e pelo que ela própria relata, parece ter ocorrido uma certa falta de opção.

A primeira vez que vi o termo Síndrome de Cirilo, me identifiquei de imediato com a ideia mas só depois de algum tempo caiu a ficha do que aquilo representava para mim. Eu sou filha de uma relação que surge a partir de uma síndrome de Cirilo e desde então não paro de pensar como isso influenciou e influi na minha vida desde sempre. Não é viagem e nem tampouco histeria, como tem nos taxado algumas pessoas ao discutirmos questões como essa. Trata-se, antes de mais nada, de entender como certos tipos de relações podem afetar nossas vidas pessoais.

Meu pai sempre foi o tipo de negro que fingiu a vida toda que o racismo nada tinha a ver com a vida dele. Isso trouxe para mim consequências terríveis uma vez que nunca me senti a vontade para dividir a dor de passar pelo racismo que eu passava na escola, por exemplo. Ele também escolheu uma mulher branca para se casar. As consequências desse ato, que decorreu da falta de orgulho de si mesmo que meu pai sentia, trouxe-me as piores consequências. A mulher que meu pai escolheu, minha mãe, além de ser branca é também racista. Com certeza alguém dirá: impossível! Como uma branca racista pode se casar com um negro? A resposta a essa pegunta não é nenhum pouco simples mas no caso da minha mãe, e pelo que ela própria relata, parece ter ocorrido uma certa falta de opção.

Ela era uma imigrante nordestina em Brasília e trabalhava como empregada doméstica, como meu pai se interessou por ela, acredito que ela tenha visto nele uma saída para aquela situação em que ela vivia pois na época meu pai trabalhava e ganhava relativamente bem, com certeza mais que uma empregada doméstica. Sem falar nos relatos que ela conta até hoje do que passou nas “casas de madame”. O que parece ter ocorrido foi uma espécie de acordo tácito em que minha mãe emprestaria ao meu pai a ascensão social que sua imagem de mulher branca representava e meu pai ofereceria a ela um trampolim para sair de uma vida sem nenhuma expectativa de melhora e de ascensão, visto que minha mãe, além de tudo, é analfabeta.

O tempo passou e eu nasci. Acredito que não possa haver nada pior para uma menina negra do que ser criada por uma mulher racista. Durante toda minha infância e adolescência fui criada entendendo que eu era feia, que meu cabelo era ruim e precisava ser domado, que eu deveria ser presa dentro de casa para não dá trabalho e não me tornar uma vagabunda na rua. Essa foi a tônica de toda minha criação. Aos nove anos já estava sendo levada ao salão de “beleza” para alisar meu cabelo. Quando não dava para alisá-lo deveria mantê-lo preso com a trança e o coque que ela fazia para “domar a juba”. Além de tudo isso fui criada por minha mãe ouvindo o seguinte tipo de frase quando aparecia uma mulher negra na TV: “Essa mulher é pretinha mas até que é bonitinha”. Quando cresci e comecei a soltar meu cabelo e deixá-lo ao natural parecia que tinha cometido um crime. Perdi as contas de quantas discussões tive com minha mãe por causa disso e de quantas vezes ela me disse que meu cabelo era horrorosso.

A família do meu pai, toda composta por negros, é muito grande ele teve 12 irmãos e minha mãe sempre os abominou. Até hoje quando ela vai falar da família do meu pai ela usa os seguintes termos para se referir a eles: “raça ruim”, “raça maldita” e etc. Em uma clara alusão a raça negra deles. Meu pai por sua vez sempre tratou e ajudou muito a família da minha mãe e inclusive meu avô que é extremamente racista e sempre que vem nos visitar deixa isso muito claro, mesmo assim meu pai morre de amores por ele e o trata muito bem. Ademais meu pai foi e é humilhado a vida toda por minha mãe que sempre vez questão de deixar claro que é superior a ele. Mesmo assim, meu pai nunca esboçou nenhuma reação para terminar o casamento.

Dentro de um clima desses não é difícil imaginar o quanto as relações familiares dentro da minha casa foram permeadas de violência. As discussões e agressões são frequentes e minha mãe passou a minha vida inteira falando mal do meu pai para mim, o que se configura inclusive, como alienação parental. Mais do que um relato da minha vida pessoal, essa história serve para que as pessoas reflitam em como o racismo pode ser cruel com os negros. Eu podia ter tido uma vida e uma relação familiar saudável mas isso me foi negado. O racismo me negou uma família de verdade, o racismo só me mostrou a violência. Se o racismo no Brasil não fosse como é: velado, meu pai poderia ter se casado com uma negra, minha mãe jamais teria aceitado se casar com o meu pai e eu jamais teria passado por tudo isso e teria os problemas que tenho hoje decorrentes dessas relações, inclusive psicológicos.

Além de tudo isso, para fechar esse ciclo de violência eu dificilmente me casarei ou terei um relacionamento duradouro pois essa é a realidade das mulheres negras hoje no Brasil. Elas são rejeitadas pelos negros e vistas pelos brancos como meros objetos de desejo sexual. Espero que o texto tenha sido elucidativo para as pessoas entenderem que as consequências de uma síndrome de Cirilo podem ser bem piores do que podemos imaginar. Me pergunto quantas famílias no Brasil estão na mesma situação por causa disso. O problema é grave e muito mais sério do que possamos imaginar.

21 comments
  1. Eu me identifiquei tanto com esse texto, me vi em cada linha. Além de se referir a família do meu pai como “raça ruim”, minha mãe se refere a mim e ao meu irmão, que também é negro, como “raça ruim”, porque, segundo ela, puxamos a família do meu pai. Enquanto, a minha irmã que é branca, puxou à ela, “raça boa”, mesmo sendo filha do meu pai. Cresci ouvindo ela dizer que eu tenho inveja da minha irmã.

  2. A verdade e muita dolorosa ! Principalmente para quem sente o racismo em sua própria família, coisa que acontece diariamente e fica velado em nosso próprio lar. Umas das coisa que mais tem e pessoas racista no meio familiar, as vezes os próprios pais querendo que os filhos embranquece a família.

  3. Nossa! Que relato impactante!
    Só mesmo quem “sente na pele” para descrever, de forma tão autêntica e lúcida, tais situações dolorosas.
    As pessoas que não passam por isso, deveriam ter a obrigação de ler textos como esses antes de classificar e rotular o racismo como “frescura”.
    Eu que sou considerada “morena”, de cor “branca” na certidão de nascimento, tenho que ter peito para usar meu cabelo ao natural. Por ele ser “cheio”, depois do advento da escova progressiva, sou constantemente “aconselhada” a fazer as pazes com o formol, ao que respondo com um sorriso: sou leoa.
    Minha admiração e total identificação com a cultura negra. O blog é uma pérola rara. Parabéns!

    1. passei por situação semelhante, mas com uma tia negra que queria embranquecer a familia e parece que meu pai atrapalhou um naomoro dela na juventude, resultado,maltratou e humilhou todos os sobrinhos, os genros negros que apreciam eram enxotados (até uma celebridade negra não se tornou genro por interferencia dela)eu ouvia de um vizinho, “que negro quando dorme com branco é por que o cobertor é do negro” esse vizinho que me fortaleceu

  4. Sim, sim para tudo, tudo.

    Me reconheço em todas as linhas. Minha história, minha vida. E deixo um abraço muito apertado de força para quem escreveu, que realmente poderia ser eu. Eu conheço sua dor.

  5. Texto fantástico.. Não sei como ela conseguiu mante-se firme todos esses anos.. Mas não merecia ter uma pai que nega a raça que pertence as raízes que carrega consigo e para tentar elevar sua autoestima casa-se com uma mulher branca que só faz mal a sua própria família, falas que abalam o psicológico de sua filha, e falar mal da filha e de seu cabelo.. Infelizmente estamos num século em que a mulher negra para ser reconhecida e aceitada na sociedade precisa ter os mesmos valores que algumas mulheres brancas ao qual eu discordo! Será mesmo que a mulher branca serve para casar e a mulher negra não?

  6. Texto sensacional e muito importante para alertar sobre esse problema, que é muito pouco comentado por aí. Com exceção da parte de falar mal do meu pai pra mim – coisa que nunca aconteceu, é a mesma história da minha vida… triste como essas coisas se repetem.

  7. Concordo Dulci. Lembro de minha infância em colégio particular e sendo motivo de risadas, tanto quantdo manifestava apreço por alguma colega branca ou quando alguém passava e gritava “vai, ô, Cirilo!”. Sei que não estou na base da pirâmide de relações sociais, como a mulher negra – e já escrevi sobre isso ao site Mundo Negro – mas sei que o racismo também me afetou, e a tantos como eu que sendo negros, tiveram condições financeiras mais confortáveis do que a maioria. A mulher está na base, na solidão, mas o homem negro está equiparado, pois, mesmo que arranje uma branca (como eu já fiz algumas vezes por pura vaidade), estará ascendendo socialmente – na cabeça dele – mas estará sem saber quem ele é e sem se dar valor.

  8. “Saravá. Às que choraram com isso. Almas brilhantes. Gratidões pelo tão simples e sincero arquivo. Blocagens, estas blogagens negras que diluem a escravidão da mente alegrando Olodumarè. Poetisa anônima, poesias de asè! Saiba que represento o répão entriotrasfita e fecho lado-a-lado até o fim com as suas ideias, elas são fatos inquestionáveis. Pintando quadros e assinando em baixo elevei-me e superei isso com a Arte. Minha companheira amada até tempos atrás me mandou um escracho a este escroto, personagem vacilão, espelho de ninguém, ela tá bem ligada nas angústias que passei na escola quando era pivete, sendo zuado pelos “amiguinhos” por conta dessa porra de carrossel racista do caralho. Contrição só. Willie Lynch, mundialmente conhecido como Zumbi dos Palmares do Linchamento, sem descolar, ramelou nas ideias, nos norteou sem se dar conta de que deixou-nos todos os nossos caminhos que nos levam até a nossa mútua prosperidade completamente sinalizados de trás para frente. Pirem nisso Cirilaiadas, meramente cartas fora do baralho e relembrem-se diariamente: a casa é pequena, mas o coração é grande! “

  9. Parabéns pelo texto, pela CORAGEM e consciência em abrir o tema com um exemplo completamente pessoal e que pode ser claramente visto em outros tantos casos.

  10. Parabéns pelo texto, ajuda a muitos que não tem como imaginar essa situação compreender um pouco do que acontece na mente de quem sofre esse abuso cruel e sistemático.
    Não consigo imaginar como é se sentir inferiorizada pela própria mãe. Muita coisa que você escreveu lembra o que minha falecida avó falava as vezes.
    Tomara que elucide outros também.

  11. Senti uma angústia imensa lendo esse relato. Meu marido é branco, nunca notei nenhum tipo de preconceito escrachado vindo da parte dele ou da família, pode ser que como no caso do seu pai eu e minha família temos condições financeiras infinitamente melhores do que a dele e família.
    Mas diversas vezes vendo filmes onde mostra por exemplo a segregação nos EUA ele pensa ser “exagero” ou qdo existe um preconceito evidente ele também acha que é exagero…óbvio só sentindo na pele.

  12. Nossa… É triste ler e perceber as marcas do racismo ainda em seu texto. Percebo muita amargura… Para além de enfrentar o racismo que é um fato social em nossa realidade, hoje precisamos nos livrar das correntes, deixa-la no passado e fazer/criar um mundo em que nos sentimos sujeitos de direito, ser mais fortes do que nos percebemos e transcender. Não quero que meus filhos vivam amargurados sem ter e pertencer a um lugar no mundo, trabalho sempre a alto estima deles e o empoderamento. Anônima, espero que você com toda sua compreensão e poder de crítica seja um agente de mudança em sua vida e um exemplo para os demais afrodescendentes do nosso país. Lamentável sua história e também como se sente em relação à ela.

  13. Sou filha de um mulato e uma branca. Nunca ouvi desaforos da minha mãe em relação a minha raça, ou cabelo, ou se sou feia. Nenhuma vez minha mãe falou mal do meu pai como base o diminuindo por ser negro. O engraçado e que ela foi criada por uma família branca de racistas, todas as minhas tias se casaram ou tiveram relações com negros mas são preconceituosas. Minha avó e avô não aceitaram no começo mas se apaixonaram por meu pai por ser o homem bom que eh e sempre os ajudou. Minha avó só confiava no meu pai para dirigir. Meu pai massacrava a joanete do meu avô, coisa que os filhos não faziam. E em contrapartida, no lado da família do meu pai eu sou também a única neta negra com meus primos brancos e sempre fui tratada diferente. Que ironia!

  14. Texto incrível! Importante! Por isso que não acho correto o “linchamento” aos homens negros que tem relacionamentos com mulheres brancas. A ação deve ser de educação, conscientização e acolhimento. Esses homens também sofrem! Não se aceitam! Não se amam! Não se trata APENAS de desvalorização do outro (a mulher negra), mas de desvalorização de si próprio. A autoestima deles também precisa ser trabalhada.

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