Quando a editora me fez saber que na minha semana de estreia no Blogueiras Negras o debate seria em torno do “amor afrocentrado”, a minha reação imediata foi me abster de escrever sobre o tema, ainda que ele frequente, de maneira assídua, as preocupações políticas mais fundas e caras que me habitam. Pensei clamorosamente: Logo no meu debut, insurge-se um tema tão espinhoso, quanto inarredável. Oh, céus!
Certas ordens de inquietação foram definitivas para meu espanto e recuo momentâneos: inegavelmente, falar de amor, como categoria que nos humaniza e põe a nu as balizas políticas com as quais nos pomos no mundo, é tarefa que não se efetiva sem incômodos conceituais, subjetivos e políticos. Sou partidária da ideia de que devem-se abrir brechas em uma nuvem de pensamento demasiada densa e tentar dissipar obstáculos que esfumam categorias imprescindíveis para pensarmos amplamente no amor e, com tanto mais razão, no assim denominado amor afrocentrado.
Arrefecido o receio de falar sobre o assunto, vasculhei os possíveis ângulos de exploração da minha escrita, dimensionei a complexidade que envolve o tema, aferrei-me em encontrar um fio condutor que pudesse atrair as questões que abarcam esse tópico. Para ser acaciana, principiemos pelo começo. Inescapavelmente, alguns questionamentos se impõem: É apropriado falarmos em amor afrocentrado? Quando evocamos o termo, o que essa adjetivação suscita? De que variável de amor se trata? A expressão concerne a relacionamentos entre iguais, ou seja, entre mulheres e homens negros (uma advertência à leitor(a): não estou pensando aqui apenas nos casos heteronormativos; homens e mulheres aqui designam também relacionamentos homoafetivos)? Corresponde a uma perspectiva, a uma cosmovisão que orientaria as práticas amorosas e que fundaria uma ética dos relacionamentos, do cuidado de si e dos outros?
Normalmente, a assunção do termo afrocentrado para qualificar o amor encontra lugar, de um lado, na contraposição às visões universalistas que não alcançam os efeitos perversos do racismo e nas formas que ele opera nos modos de subjetivação e, de outro, na impossibilidade de legitimar práticas que estão fora do catálogo ocidental que nos dita o modus vivendi. A dita era pós-moderna ou da modernidade líquida nos impulsiona a reposicionar as discussões em torno do amor, num mundo, como diria o sociólogo Zigmunt Bauman, “repleto de sinais confusos, propenso a mudar com rapidez e de modo imprevisível, que se mostra fatal para nossa capacidade de amar – seja esse amor direcionado ao próximo, nossos/as parceiros/as ou nós mesmos/as”.
A propósito, a perspectiva afrocentrada trava embate discursivo com a matriz eurocêntrica, pródiga em não reconhecer saberes e fazeres de outras civilizações. Quando o faz é pelo viés do rebaixamento. Os afrocentristas confrontam as teorias que relegam a África e os africanos às bordas do conhecimento. Muitas tintas foram gastas para demonstrar que o afrocentrismo constitui, ao fim e ao cabo, uma outra forma de dominação por postular a centralidade que condena em outras culturas. Ao contrário, a proposta é deslocar o centro da gravidade da geopolítica para outros lugares do planeta, onde também se produz conhecimento, epistemologia, civilização, política. É dizer que o centro está em todo lugar. No rastro dessas considerações, o amor afrocentrado poderia, assim, ser visto como um contraponto às modalidades correntes do amor.
Mas eis a carga de tensão que o termo carrega: se o afrocentrismo vem servindo pedagogicamente para desarticular uma epistemologia calcada em princípios eurocêntricos, não sei se a tudo recobre para a reconstituição de nossa humanidade. Quer me parecer que esse deslocamento não se mostra suficiente para as reflexões atinentes ao amor e aos seus desdobramentos na população negra. Abrigar os desafios, as conquistas, as decisões políticas da escolha de parceiras/os negras/as no guarda-chuva do afrocentrismo parece-me uma tarefa arriscada e pouco producente.
Como se sabe, o amor sempre figurou como expediente importante na história da humanidade. Debates desenvolvidos às fronteiras da filosofia e ciência política, para ficarmos nas mais notabilizadas, disso dão testemunho. De Platão a Santo Agostinho, de Kiekegard a Hanna Arendt, o assunto não cessa de nos interrogar. As narrativas sobre o amor, como tentativas, são sempre deficitárias, incompletas, posto que falam do inatingível, de uma parte inacessível que todos nós carregamos.
Amor como categoria política, como derivada das molduras do racismo e da escravidão
Do lugar que a gente vê, já que, como diz o adágio africano, “cada um vê o sol do meio dia da janela de sua casa”, interessa-nos pôr em relevo reflexões direcionados a nós, pessoas negras. Refiro-me a autoras que fazem menção direta ou lateral ao tema em tela: bell hooks, Audre Lorde, Toni Morrison, Paulina Chiziane, Gislene Aparecida dos Santos, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro. Essas autoras, ainda que partam de lugares diferentes, tomam como nexo importante para o debate os efeitos da escravidão e do racismo, uma janela indispensável para avaliarmos como as nossas subjetividades são tecidas.
Em Vivendo de amor, hoje um clássico em nosso meio, bell hooks aponta de maneira singela, mas com profundidade, as formas de subalternidade que a escravidão nos legou, atingindo em cheio a plataforma dos afetos. Tornar-se capaz de amar é um imperativo para homens e mulheres negros, segundo hooks. De acordo com ela: “Não tem sido simples para as pessoas negras desse país entenderem o que é amar. M. Scott Peck define o amor como ‘a vontade de se expandir para possibilitar o nosso próprio crescimento ou o crescimento de outra pessoa’, sugerindo que o amor é ao mesmo tempo ‘uma intenção e uma ação’. Expressamos amor através da união do sentimento e da ação. Se considerarmos a experiência do povo negro a partir dessa definição, é possível entender porque historicamente muitos se sentiram frustrados como amantes”.
Considerando os efeitos nefastos da escravidão, podemos a partir dessa experiência trágica encontrar pistas que entrelaçam a nossa história no que concerne às formas de amar e ser amada/o. Ainda segundo bell hooks, “o sistema escravocrata e as divisões raciais criaram condições muito difíceis para que os negros nutrissem seu crescimento espiritual. Falo de condições difíceis, não impossíveis”.
Eis os desafios para a constituição de laços afetivos entre as pessoas negras. Se, por um lado, reconhecemos que a escravidão e o racismo impactam diretamente em nossa intimidade, como ensina bell hooks e outras feministas negras, a exemplo da filósofa Sueli Carneiro, por outro, temos consciência do nosso papel de sujeitos para a mudança desse quadro que nos condiciona, mas não nos determina, nos limita, mas não nos impossibilita. Sermos sujeitos de nossa história afetiva exige o reconhecimento de nosso lugar na história (escravizados, vítimas do racismo), com o prioritário papel de revertermos os efeitos deletérios dos sistemas de dominação para que promovamos o verdadeiro reencontro com nossa humanidade, que é um reencontro com o outro, aquela/e com a/o qual nos vinculamos.
A não realização desta tarefa vem fazendo com que muitas/os de nós exercitemos a incapacidade de amar os/as iguais de maneira quase impulsiva. Esse problema nem de longe pode ser visto de forma essencialista, mas como uma plataforma política com a qual podemos alcançar a nossa integral emancipação (o termo afrocentrado aplicado ao amor pode, inadvertidamente, nos levar a um labirinto de confusões e provocar uma cascata de consequências indesejáveis).
Numa sociedade em que o machismo conjuga-se com o racismo, o ônus que as mulheres negras carregam em torno dessa dinâmica é patente: múltiplas formas de abandono, violência física, psicológica e simbólica, incomunicabilidades, solidão. Trazer esses dramas à superfície do tecido social é muito mais do que simples lavagem de roupa suja, como diriam alguns; trata-se de converter essas recorrências em ação política que mobiliza categorias imprescindíveis, como ética, compromisso, dignidade e lealdade. Muitas de nós reagimos com altivez, interceptando as formas de relacionamento que mesmo entre os nossos nos apequena, e projetamos parcerias e vínculos que se interrogam constantemente sobre os lugares sociais e simbólicos que devemos ocupar numa relação amorosa. Trata-se também de uma espécie de convocação para que os homens negros operem correções de rota a fim que os projetos de casais negros respondam a mudanças significativas no imaginário coletivo que nos informa sobre nós mesmos como subtraídos de amor e, portanto, incapazes de dar e recebê-lo.
O enfrentamento dessas espinhosas questões é um passo decisivo para experimentarmos as singularidades das nossas relações amorosas, sem cairmos em particularismos, tampouco em essencialismos. Reivindicarmos a nossa plena humanidade, sempre, é ação vital para que as decisões políticas em torno dos afetos e dos/as escolhas de parceiros/as seja um ato de resistência ao racismo e ao legado da escravidão. Tal decisão não pode se dar, contudo, às custas da perda da dignidade de cada um(a) e de todos(as). A dignidade, esta sim, deve nos orientar para que tal projeto não se converta em triste retórica política.
PS: Só durante a escrita deste artigo, caiu-me a ficha de que a escolha deste tema pode ter conexão com o dia dos namorados, que é 12.