“Eu disse: o meu sonho é escrever!
Responde o branco: ela é louca.
O que as negras devem fazer…
É ir pro tanque lavar roupa.”
(JESUS, 1996b, Quadros, p.201)
Falar de Carolina Maria de Jesus, escritora mineira (Sacramento, 14 de março de 1914 – São Paulo, 13 de fevereiro de 1977) é uma tarefa que em minha vida virou um dos instrumentos de militância. Na verdade, escrever sobre a literatura produzida pela mulher negra e reivindicar seu espaço e voz em meio à uma sociedade machista, racista e uma literatura idem, é tarefa cotidiana.
Quando conheci Carolina, estava à procura de poesia e prosa escrita por mulheres negras (minha adolescência), era momento em que me via em crise sem me sentir “representada” (controvérsia no meio literário) e queria saber afinal, aonde estavam as escritoras negras? Por que não as via nos livros, exposições, palestras ou na escola? Em meio à pesquisas, achava poucos materiais e com eles fui contando a fim de conhecer as escritoras. Nos caminhos à essa procura, que também me ajudaram a traçar meu caminho como escritora, eis que me veio “Quarto de despejo – diário de uma favelada”. A primeira vez em que li foi um soco no estômago, mas ao mesmo tempo bateu a identificação com a mulher que ali escrevia, em papéis achados em meio ao lixo, costurou um retrato do Brasil, na época camuflado pelas classes dominantes – como chavama a própria autora, a “sala de visitas” (qualquer semelhança com o quadro atual, não é mera coincidência). A sensação pode ser ilustrada na seguinte citação: “Quem não conhece a foma há de dizer: “quem escreve isto é louco”. Mas quem passa fome há de dizer: – Muito bem, Carolina!” (JESUS, 1961, p. 34).
A partir daí, quis conhecer toda sua vasta obra, constituída não só de diários, como também músicas e poesias. Mas a dúvida principal na minha descoberta sobre Carolina era: Por que Carolina permanece esquecida? Por que tão pouco material a seu respeito? Qual o motivo do silêncio em seu centenário? (já que aconteceram alguns eventos, mas foram pouquíssimos e um dos principais locais de São Paulo que recebem exposições, o Museu da Língua Portuguesa não apresentou nenhuma atividade sequer sobre a escritora.). Queria entender porque uma escritora que foi sucesso na década de 60 por todo o país, teve uma queda tão repentina cujo apagamento possui reflexos até hoje.
O fato é que comecei a investigar vida e obra de Carolina, para tentar compreender profundamente o contexto no qual estava inserida, a sociedade e como a sua literatura havia sido exaltada de maneira tão efêmera, tanto quanto sua queda.
Sobre a literatura, seguem alguns dados que nos ajudarão a pensar: foram vendidos dez mil exemplares nos três primeiros dias de publicação do seu diário “Quarto de despejo” (em 19 de agosto de 1960) e imediatos os convites para programas de TV, debates, encontros com intelectuais, viagens nacionais e internacionais.Outras obras de escritores já consagrados foram lançadas na mesma época de “Quarto de despejo” contudo, não alcançaram o mesmo número de vendas tão imediato de Carolina Maria de Jesus, como por exemplo a obra Gabriela Cravo e Canela de Jorge Amado. Em outubro de 1960, seu diário é o livro mais vendido no Brasil. O momento literário e histórico estava voltado às obras literárias ligadas aos aspectos sociais.
A vida da escritora mudou completamente no que se refere à moradia, já que do “quarto de despejo” (a Favela do Canindé, às margens do Rio Tietê na qual residia com os filhos), mudou-se para uma “casa de alvenaria”, no Centro da cidade (como chamava, inclusive virou um outro diário que contava sua vida na “casa de alvenaria”). Embora tenha mudado de endereço, Carolina continuava sendo mulher, negra, mãe solteira e inserida numa sociedade racista, logo não houve tanta mudança assim.
Alguns usos linguísticos de Carolina fizeram com que muitos dissessem que não passava de uma farsa a sua produção literária, ignorando todos os aspectos de seu texto que carregava muito mais que linhas e números notáveis de venda, era retrato da sociedade agora contado em primeira pessoa, por quem viveu a cidade de São Paulo que não estava na televisão ou nos livros, de quem viveu a favela. Se por um lado alguns defendiam que a autora não seria capaz de escrever visto sua classe, raça e pouco letramento, por outro lado diziam que algumas palavras presentes no diário, seriam de quem “dominava a linguagem” alegando até mesmo que tratava-se de uma obra de Audálio Dantas, repórter da Folha de São Paulo que descobriu Carolina em uma visita à favela do Canindé para uma matéria em mais ou menos década de 50/60. Esses argumentos nos dão base para que vejamos o racismo escancarado que vai ser uma espécie de “mola” para que se deslegitime a literatura negra produzida, nos demonstra a face cruel de “exotificação” racismo sob uma mulher negra, residente da favela ao fazer literatura e penetrar num campo que foi por muito tempo construído e constituído por poucos, não só para leitura, como também para a escrita. Espaço literário do qual, Carolina raramente poderia ser inserida, por escrever uma literatura que não era consagrada pelo cânone – com temas e lugares comuns palatáveis aos gostos “refinados” (burgueses, diga-se de passagem) – presentes até hoje em nossa literatura. Era a literatura escrita em primeira pessoa, sobre uma realidade que ninguém queria ler ou enxergar .Só quem viveu poderia, enfim dissertar. Como cita a própria autora “Eu sei que vou angariar inimigos, porque ninguém está habituado com este tipo de literatura. Seja o que Deus quiser. Eu escrevi a realidade porque eu pensava que o repórter não ia publicar”(JESUS, 1961, p. 30).
O sucesso de Carolina foi tão efêmero quanto a sua queda. Não faltaram críticas à seu respeito no Brasil, mas seu livro principal “Quarto de despejo” foi sucesso mundial e continua até hoje sendo traduzido para diversas línguas. Sobre os livros teóricos a seu respeito, pouco são achados no Brasil. Poderia listar vários elementos dos quais colaboraram para que a literatura da autora voltassem ao quarto de despejo, contudo teria que me estender muito e correria o risco de fazer uma análise muito rasa e problemática a respeito, por isso decidi focar em um elemento: a mídia.
A mídia brasileira esperava que Carolina Maria de Jesus, ocupasse “o seu lugar”, como mulher negra, mãe solteira e favelada, ou seja, que ela obedecesse papéis dos quais a sociedade racista sempre espera de nós negrxs, para que se mantenham as hierarquias, e nós, claro, sempre carregando em nossas cabeças as “latas d’água sociais”. Por um lado era acusada de imitar uma classe da qual não fazia parte, de outro era vista com desdém e ridicularizada por não corresponder à estereótipos, como é dito em sua biografia “Muito bem, Carolina!”: Carolina não corresponde aos estereótipos e sempre surpreende. Negra, espera-se que seja humilde, mas não é. Mulher, espera-se que seja submissa, mas não é. Semi-analfabeta, espera-se que seja ignorante, mas não é. E não sendo o que se espera dela, é rejeitada como pessoa pela sociedade e incompreendida como escritora. (CASTRO; MACHADO, 2007, p. 77)
O fato é que a mídia colaborou diretamente para o apagamento de Carolina Maria de Jesus. Não podemos negar a forte ideologia que sustenta a mídia – racista, machista e classista – sua grande influência do mesmo modo que deu repercussão à sua obra, não pelo que foi escrito, mas por quem escreveu escondendo por trás de todo esse “pseudo-interesse” uma visão racista da autora, também colaborou para seu declínio. Não era mais interessante para aquela sociedade saber da realidade da favela, que até hoje continua sendo o “quarto de despejo”, e todas as obras publicadas depois não conseguiam atingir metade do sucesso do seu primeiro diário publicado.
Para além da análise literária que tentei fazer, está Carolina Maria de Jesus como seu próprio texto, escritora e personagem de uma sociedade racista, machista e classista que a condenou antes mesmo que publicasse o seu primeiro livro. Infelizmente, várias Carolinas permanecem esquecidas, sua literatura apagada pelo cânone. É importante que se produzam textos, trabalhos e possamos redescobrir a escritora que teve papel importantíssimo na literatura negra produzida no Brasil. Não é à toa que por tantos anos permaneceu apagada dos livros, homenagens, eventos, estudos e afins, trata-se de uma ideologia que vem marcando a história negra e tentando nos dispor em “quartos de despejo” sociais.
Carolina Maria de Jesus foi agente de sua própria história, escritora, cantora, mãe e mulher negra que através da escrita pintou a realidade que daquela época ainda se arrasta aos dias de hoje. Retomando o foco do texto, não devo esquecer de mencionar que até o fim da vida a autora foi vítima da mídia racista, que a fotografou catando papéis pelas ruas, que fez entrevistas com a escritora, cujos textos saíram a ridicularizando e sua vida após sair da cidade grande e mudar-se para Parelheiros (extremo Sul de São Paulo). É necessário investigar e levantar vários elementos que sustentam ideologias, que colaboram diariamente para uma violência que passa muitas vezes despercebida, invisível.
Referências bibliográficas:
CASTRO; MACHADO, Muito bem, Carolina! – Biografia de Carolina Maria de Jesus. Belo Horizonte: C/ Arte, 2007
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo. Diário de uma favelada. São Paulo, Francisco Alves, 1960.