“Ela, que não nos poupou de seu racismo, podia ter tido a decência de nos poupar do choro que não cabe a ela; a ela só cabem responsabilização e reparação.”
Mônica Gonçalves.
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O assunto aqui é o xingamento contra o Aranha, mais um entre tantos que já ouviram e infelizmente ouvirão que são macacos. A diferença nesse caso é que, apesar de sensação de impunidade, havia câmeras para registrar como o racismo acontece. Mostrar em imagens sua face branca e ordinária, que poderia ser muito bem a do seu vizinho num país racista mas sem racistas. Um racismo que, para aqueles que não o sentem na pele, é algo trivial que não merece atenção. Muito menos um post ou dois.
“Boa tarde, eu quero pedir desculpas ao goleiro Aranha. Perdão de coração. Eu não sou racista. Perdão. Perdão. Peço desculpas”
“Eu sou a favor de parar com o racismo. Peço perdão para o Aranha, se pudesse abraçar ele eu faria para ver que eu não sou uma pessoa ruim. Eu quero que ele conheça a pessoa que eu sou, não como a torcedora que aparece naquela imagem. Eu estava muito nervosa, nunca vi meu time ganhar nada. Eu era colorada quando criança.”
E que, pasmem, poderia ser reparado com um pedido de desculpas. A estratégia é retirar o foco da agressora e fazer com que a responsabilidade recaia sobre a vítima, agora julgada não apenas pela sua cor de pele mas por sua capacidade de “perdoar”. Bingo! Por trás dessa atitude tão católica, apostólica e romana da acusada, a ideia execrável de que o racismo é algo com o qual nós negros não deveríamos nos preocupar, que pode passar literalmente em brancas nuvens. Como se não tivesse consequências futuras, para a vítima e para todos nós negros com quem isso acontece longe das câmeras.
O pedido emocionado de perdão também carrega o argumento de que o racismo não precisa ser levado aos tribunais, se resolve na esfera privada, lugar onde poderia ser cometido sem que houvesse danos. Mais que isso, na impossibilidade de negar seu próprio racismo registrado pelas câmeras, o arrependimento pretende colocar a agressora num lugar muito especial, incompatível com o racismo, algo praticado pelos outros, por gente monstruosa, não por uma mocinha delicada, chorosa e arrependida, sem agência e incapaz de causar dano intencional a alguém.
E se a prática demonstra que basta que um de nós seja chamado de macaco para que todos sejamos, o arrependimento faz com que o delito pareça ter sido dirigido apenas a uma pessoa e não à toda uma população, caindo como uma luva perfeitamente cerzida para o modo cordial (sic) que o racista brasileiro pensa, funciona e é cobrado judicialmente. Não é de se espantar que a leis que beneficia a branquitude faça a distinção entre injúria racial e racismo para abrandar o segundo e abrandar seu caráter imprescritível e inafiançável.
“Macaco, no contexto dentro do jogo, não se tornou racista. Isso se torna um xingamento dentro do futebol. Uma das expressões dentro do futebol. As próprias mães dos árbitros são xingadas historicamente dentro do futebol”
A lógica que deu origem ao grito desses torcedores é nossa velha conhecida. Precisa ser entendida como o mesmo pensamento que justificou a escravização de toda uma população por 350 anos, não há perdão possível. Manifesta e naturaliza, por meio de uma única palavra, o argumento de que negros seríamos inferiores aos brancos, portanto aceitável que sigamos em estado de subalternidade e subserviência ou que sejamos chamados de macaco sem que isso seja considerado digno de tamanha repercussão.
O assunto aqui é o xingamento contra o Aranha, mais um entre tantos que já ouviram e infelizmente ouvirão que são macacos. A diferença nesse caso é que, apesar de sensação de impunidade, havia câmeras para registrar como o racismo acontece. Mostrar em imagens sua face branca e ordinária, que poderia ser muito bem a do seu vizinho num país racista mas sem racistas. Um racismo que, para aqueles que não o sentem na pele, é algo trivial que não merece atenção. Muito menos um post.
“Boa tarde, eu quero pedir desculpas ao goleiro Aranha. Perdão de coração. Eu não sou racista. Perdão. Perdão. Peço desculpas”
E que, pasmem, poderia ser reparado com um pedido de desculpas. Pedido esse que foi dirigido em primeiro lugar ao time e só para não ficar tal mal assim, para a vítima. A estratégia é retirar o foco da agressora e fazer com que a responsabilidade recaia sobre a vítima, agora julgada não apenas pela sua cor de pele mas por sua capacidade de “perdoar”. Bingo! Por trás dessa atitude tão católica, apostólica e romana da acusada, a ideia execrável de que o racismo é algo com o qual nós negros não deveríamos nos preocupar, que pode passar literalmente em brancas nuvens. Como se não tivesse consequências futuras para todos nós negros com quem isso acontece longe das câmeras.
O pedido emocionado de perdão também carrega o argumento de que o racismo não precisa ser levado aos tribunais, se resolve na esfera privada, lugar onde poderia ser cometido sem que houvesse danos. Mais que isso, na impossibilidade de negar seu próprio racismo registrado pelas câmeras, o arrependimento pretende colocar a agressora num lugar muito especial, incompatível com o racismo, algo praticado pelos outros, por gente monstruosa, não por uma mocinha delicada, chorosa e arrependida, sem agência e incapaz de causar dano intencional a alguém.
Mandela já disse: basta que um de nós seja chamado de macaco para que todos sejamos. O tal do arrependimento faz com que o delito pareça ter sido dirigido apenas a uma pessoa e não à toda uma população, caindo como uma luva perfeitamente cerzida para o modo cordial (sic) que o racista brasileiro pensa, funciona e é cobrado judicialmente. Não é de se espantar que a leis que beneficia a branquitude faça a distinção entre injúria racial e racismo para abrandar o segundo e abrandar seu caráter imprescritível e inafiançável.
“Macaco, no contexto dentro do jogo, não se tornou racista. Isso se torna um xingamento dentro do futebol. Uma das expressões dentro do futebol. As próprias mães dos árbitros são xingadas historicamente dentro do futebol”
A lógica que deu origem ao grito desses torcedores é nossa velha conhecida. Precisa ser entendida como o mesmo pensamento que justificou a escravização de toda uma população por 350 anos, não há perdão possível. Manifesta e naturaliza, por meio de uma única palavra, o argumento de que negros seríamos inferiores aos brancos, portanto aceitável que sigamos em estado de subalternidade e subserviência ou que sejamos chamados de macaco sem que isso seja considerado digno de tamanha repercussão.
Chamar alguém de macaco, no contexto de uma sociedade estruturalmente racista, é nada menos que racismo em toda sua crueza e potência. Não existe outro significado possível. Dentro e fora dos estádios, tem como objetivo desumanizar a existência da pessoa negra a quem se considera nada mais que um animal. Não estamos falando de uma simples injúria racial como tem sido vergonhosamente tipificados os crimes de racismo afim de proteger os agressores, porque carrega consigo a ideia de que todos aqueles que tem pele negra não são ou não merecem ser considerados humanos.
A denúncia de que o xingamento, longe de ser engraçado ou inofensivo, é de uma violência simbólica extrema deveria ser o foco principal da mídia na cobertura do caso. Ela justifica não apenas o processo, como a acertada decisão de afastar qualquer time de futebol de um campeonato. Racismo não merece perdão. O que motiva alguém a ser racista não é o calor do momento, não é a ignorância. É o próprio racismo. Os torcedores não decidiram ser racistas naquele momento. Ela já são. O que aconteceu, e isso só agrava tudo o que vimos, é que se sentiram confortáveis o bastante para manifestá-lo publicamente porque ninguém estaria vendo.
“Ela é gente boa, vai em roda de samba com preto, gosta de preto, fica com preto. Foi na emoção do momento, ela não é racista”.
Como era de se esperar, a defesa de Patrícia Moreira, seja através da mídia, seja através de seus advogados, tem sido um desfilar de clichês. A desfaçatez é tamanha que até amigos negros foram estampados num grande portal para defender a agressora. A estratégia calculada, capenga e nada surpreendente é de fazer valer o senso comum de que racista é apenas aquele que se nega a conviver com negros, que racismo só é racismo se todos os negros em uníssono o denunciarem.
O racismo se manifesta de diversas maneiras e através de diversos atores que tem em comum apenas a branquitude. Não é privilégio de endinheirados, dos monstros ou de outrem como se quer fazer acreditar ao dizer que Patrícia Moreira é de origem humilde, tem amigos negros. Racismo não é uma questão de ter ou não dinheiro, tem a ver com uma relação de poder em que alguém se considera no direito de desumanizar outro e/ou se beneficia de privilégios, conscientemente ou não, com base na cor da pele.
Porém, para ser racista basta sê-lo. Mesmo convivendo com negros, usando turbantes ou dreadlocks. Xingar alguém de macaco não tem nada a ver com a emoção do momento, mas com o racismo que, antes guardado a sete chaves, um dia acaba aparecendo. Faz parte de um sistema de engrenagens que constituem um “fenômeno de abrangência ampla e complexa que penetra e participa da cultura, da política e da ética (…) que se organiza e se desenvolve através de estruturas, políticas, práticas e normas capazes de definir oportunidades e valores para pessoas e populações a partir de sua aparência”. [1]
“A Patrícia já sofreu ameaças. Só não vem sofrendo ameaças porque saiu das redes sociais, saiu da casa dela. A Patrícia perdeu a vida dela”
Todo negro, dentro ou fora daquele estádio, é vítima do xingamento, de suas causas e consequências. Xingar alguém de macaco nos mata concreta e simbolicamente porque faz ele cada um de nós, algo menos que um ser humano. Que os agressores sejam responsabilizados judicialmente por seu racismo. Que o foco seja o sofrimento, que terá consequências para toda uma vida, causado à vítima em especial. E se você não faz a menor ideia do que estou falando, tente imaginar por um segundo o que significa toda uma turba xingando você simplesmente por causa de seu tom de pele. Esse é o grito que ecoa noite e dia em nossos ouvidos, durante todas as horas do ano.
É exatamente disso que se trata, definir qual é o lugar de todos nós negros numa sociedade ainda racista, que trata o racismo como coisa menor. Para os torcedores o único valor possível a ser atribuído a um jogador negro é o de animal. Não qualquer um deles, mas um macaco que representa uma existência inferior na escala evolutiva. Nesse sistema de coisas, brancos seriam por sua vez seres humanos em sua completude, excelência. O nome disso disso é racismo e qualquer pessoa que tente nos convencer do contrário compactua com ele.
“Todos os negros do mundo são ofendidos quando alguém ofende um.”
Nelson Mandela.
É disso que estamos falando.
Obrigada Aranha por se negar a encontrar sua agressora. Nessa você nos representa.
Notas
1. Racismo institucional, uma abordagem teórica. Geledés.
Imagem de destaque – Carlos Latuff.