“Já brilhou nos caxambus
E hoje aqui ela é rainha
Clementina, cadê você?
Cadê você, cadê você?
Clementina, cadê você?
Cadê você, cadê você?
Clementina de Jesus
É de fato partideira
Tira verso improvisado
Num partido de primeira
Clementina, cadê você?” – Trecho da música “Clementina cadê você?”
Falar sobre Clementina de Jesus (Valença, RJ, 1901 – Rio de Janeiro, RJ, 1987) é uma honra e ao mesmo tempo um desafio. Uma honra porque pesquisar, conhecer e contar a história de alguma mulher negra que me fortalece de algum modo – em seu caso pela voz e força que me dá ouvi-la – sempre será uma tarefa que levarei ao passo das reticências do que é viver. Para mim é uma missão/compromisso contar e proteger essas histórias que permanecem por muito não escritas ou silenciadas. O desafio se dá na escassez de materiais presentes para que pudesse ser feita uma pesquisa minuciosa, pois não queria escrever de modo tão direto ou sucinto, gostaria que a escrita acerca da Rainha Quelé fosse tão passível de mergulho como sua voz e canções.
Clementina de Jesus caracteriza um resgate à cultura afro-brasileira. A sua música ilustra traços sociais e culturais de uma tradição, contrariando as produções que até então eram reflexo de uma sociedade racista e avessa à qualquer manifestação que ouse contar uma história em primeira pessoa e buscar traços da ancestralidade. Traços que devem ser cotidianamente rememorados, para que para que a nossa memória seja também uma ferramenta de luta.
Quando conheci Clementina de Jesus ouvi ao longe uma voz que dizia “Tava drumindo, cangoma me chamou (…) Disse levanta povo, cativeiro já acabou”. Ouvi com bastante atenção e quis saber quem era afinal aquela mulher. Perguntei por aí e alguém me falou, ela é Clementina de Jesus, logo a confundi com a autora Carolina Maria de Jesus. Desfiz a confusão, tempo depois descobri que realmente ambas teriam mais coisas em comum do que eu poderia imaginar. Ambas alcançaram o sucesso tardiamente – Clementina de Jesus pisou no palco pela primeira vez aos 63 anos no Teatro Jovem, já Carolina Maria de Jesus publica seu primeiro livro em agosto de 1960, aos 46 anos de idade. Ambas mulheres negras que tiveram grande influência na cultura brasileira, cada qual a sua maneira. Uma das semelhanças mais tristes entre essas mulheres segue sendo o esquecimento, Carolina no campo literário, Clementina no campo musical. O certo nessa história toda é que dali em diante quis que sua voz e história me embalassem musical e espiritualmente. Interessante refletir sobre como essas mulheres negras alcançaram o sucesso tardio, enquanto outras mulheres da época – brancas – muito antes disso já gravavam suas músicas e publicavam livros.
Clementina de Jesus, conhecida também como Rainha Quelé, nasceu no ano de 1901 em Valença – RJ. A sambista possuía um conjunto musical singular, cujo destaque está na herança africana de seus cantos e a religiosidade presente nas canções. A cantora e compositora era filha de Amélia de Jesus dos Santos, parteira, e Paulo Batista dos Santos, capoeirista e violeiro. Já na família e vivencia na região que abarcada vários jongueiros, aprendeu as músicas populares e os traços africanos que seriam o principal motezn de sua música anos mais tarde.
Ainda criança já chamava a atenção pela sua voz e fez parte do grupo de Folia de Reis, anos depois foi para o Bloco As Moreninhas de Campinas. Um momento muito marcante da época foi ter sido convidada por Heitor dos Prazeres, um dos pioneiros do samba carioca, para ensaiar com suas pastoras. Sobre esta fase aqui explicitada destaquei uma citação relacionada à infância de Clementina de Jesus, na qual “cresceu assim num misticismo estranho: vendo a mãe rezar em jejê nagô e cantar num dialeto provavelmente iorubano, e ao mesmo tempo apegada a crença católica” (Hermínio Bello de Carvalho).
Já em sua vida adulta, muito antes de alcançar o sucesso no Brasil, Clementina trabalhou como empregada doméstica, lavadeira e passadeira por 20 anos e acompanhou o desenvolvimento da escola Portela, tudo isso em RJ. Casou-se com Albino Pé Grande e ambos foram residir no Morro da Mangueira. Continuava a cantar, mas sem plano algum profissional, mas talvez já soubesse espiritualmente que sua voz ecoaria pelo país inteiro, musicando sua ancestralidade.
Anos mais tarde chegaria o sucesso da cantora. O compositor e produtor Hermínio Bello de Carvalho a encontrou no ano de 1963 num evento festivo – festa da Penha – um tempo depois a reencontrou e dali em diante conversaram e ele enxergou uma sambista de talento sem igual. Começaram a ensaiar para o famoso evento “Rosa de Ouro”, show que seria o marco em sua carreira. O evento contava com grandes nomes da música como Paulinho da Viola e Aracy Côrtes, mas o destaque foi de Clementina de Jesus, e no dia 7 de dezembro de 1964 pisaria nos palcos a Rainha Quelé.
Sua música se caracterizou por jongos, músicas de trabalho (cantados em bantu), pontos de umbanda, candomblé e ao mesmo tempo havia elementos do catolicismo. Tudo que havia em sua música representava a singularidade de um dos maiores nomes da música popular brasileira, que embora tenha marcado o cenário musical ainda segue invisível, assim como várias cantoras negras que sequer ganham espaço nos repertórios ou mesmo materiais para que possam continuar a serem ouvidas.
No meio desta pesquisa os materiais eram escassos, informações desencontradas e uma dificuldade muito grande apresentar Clementina de Jesus como realmente deveria fazê-lo. Afinal, escrever sobre ela não é apenas a parte gráfica do texto, é uma travessia espiritual em busca de elementos que possam trazer um pouco da história que não encontramos nos livros, sentir a representatividade de ter uma música cantada pela dona Clementina.
A cantora fez várias participações especiais em discos até que gravou seu primeiro Clementina de Jesus (1966) , disco cuja caracterizando por ser seu primeiro trabalho solo e no repertório haviam jongos, curimãs, sambas, e partido-alto, Rosa de ouro n. 2 – Clementina de Jesus, Araci Côrtes e Conjunto Rosa de Ouro (1967), Nelson Cavaquinho e Odete Amaral (1968), Gente da antiga – Pixinguinha, Clementina de Jesus e João da Baiana (1968), Clementina, cadê você? (1970), Marinheiro só (1973), Clementina de Jesus – convidado especial Carlos Cachaça (1976), Clementina e seus convidados (1979), Fala, Mangueira! – Carlos Cachaça, Cartola, Clementina de Jesus, O canto dos escravos – Clementina de Jesus, Doca e Geraldo Filme (1982), Raízes do samba – Clementina de Jesus (1999). Gravou ao todo 13 LPs.
Clementina de Jesus fazia também muito sucesso em alguns lugares do continente africano, nos quais era reconhecida. Destaque para o festival de artes negras em Dakar em 1966, onde foi o destaque do evento. Foram vários festivais que a aclamaram e por mais que pouco se ache elementos escritos de sua história, ela continua viva. E por falar em Clementina… acredito que agora sei onde está, remetendo à pergunta que intitula o texto e também virou letra de música: Clementina de Jesus estava em Inhaúma no Rio de Janeiro, onde faleceu em decorrência de um derrame no ano de 1987.
Ela estava lá, mas sua história não foi enterrada, tão pouco silenciada assim como a sua voz naquele ano. É certo que permanece viva se buscarmos elementos de suas contribuições para a música e cultura popular de um modo geral. A cantora influenciou várias canções que temos hoje, as que ouvimos na infância. Influenciou o jeito de se fazer música no Brasil, na busca sem medo pela ancestralidade e caminhos de travessia que a vida nos oferece, caminhos às vezes estreitos, mas sempre caminhos. Permanece viva quando coloco uma música sua e tento me reconhecer, ou pedir ao ouvir a sua voz embala eu.
Clementina de Jesus foi e ainda continua sendo a principal voz da música negra feminina no Brasil, se de modo tentaram apagar nossa história e silenciar, de outro podemos resgatar ao irmos em busca de Clementina que não se escondeu, nem sumiu com o tempo do era uma vez. Quando ouvirem por aí Cadê você, Clementina? Saiba que ela está viva em cada uma de nós, nas histórias que ouvimos, que contamos e na história que cotidianamente estamos buscando. Sua música nos torna eternas num tempo que nós quer efêmeras.
Reitero aqui a dificuldade de falar em mãe Clementina (como era e é chamada carinhosamente) a ausência de materiais dificulta muito este processo, mas aí está a necessidade deste texto, de divulgar um pouco da sua história, mesmo parecendo apenas um rascunho. De mostrar parte da sua discografia, facilitando o processo de quem conhece ou virá a conhece-la. O compromisso aqui está em contribuir no (re)conhecer Clementina de Jesus, mostrando que por aí, nas páginas ainda não escritas, contudo na parede das memórias ainda permanecem vivas várias Clementinas a nos embalar, para que jamais sejam capazes de calar nosso canto. Acredito que agora achei Clementina!
Imagem de destaque – Clementina de Jesus, reprodução web.