Há dias venho tentando escrever e não consigo
Penso temas, começo parágrafos, mas desisto e apago. Só hoje esse já é o quarto texto que estou começando e não sei se vou acabar.
É certo que quero falar das questões das mulheres negras, mas são tantas. E é certo que preciso ser assertiva e coerente para minha argumentação fazer sentido e ser levada a sério. Para eu, negra, mulher, 25 anos, moradora da zona norte ser levada a sério.
Mas sinceramente não estou dando conta. Sempre que penso em dissertar sobre todos os conceitos e construções sociais que eu já li, aprendi e discuti eu me lembro de coisas que vão embaralhando minha mente.
A primeira frase que eu lembro é: “E eu perdi meu neném na rua, porque não deu tempo de voltar pro posto de saúde.”. “Meu neném”, a mulher falava “meu neném” de um jeito tão carinhoso que me deu uma tristeza que quase me fez cair no chão. Falávamos sobre tratamento das grávidas na saúde pública e ela contava do dia em que, grávida, passou mal e foi ao posto de saúde, mas foi mandada de volta pra casa depois de uma “olhada do médico”. Ela continuou passando mal e precisou da ajuda de um policial para conseguir sair de casa e tentar voltar pro hospital. Mas não deu tempo. E ela perdeu o “neném” dela no meio da rua.
Lembro também do menino de uns 12 anos na Cidade de Deus que não queria fazer a prova de avaliação da prefeitura. Ele dizia que não ia mudar nada na vida dele e me afrontava. Mas me afrontava de um jeito que eu sinceramente admirei. Uma coragem, uma força, um jeito de olhar no fundo do teu olho como se não tivesse medo de nada. Esse jeito duro, meio frio e distraído que a gente só vê nos meninos negros e pobres de 12 anos. E eu insistente e admirada, sem nenhuma pedagogia e técnica bati de frente com o moleque, olhei no olho por mais que me intimidasse, peguei as cartinhas do jogo dele e disse que ele podia fazer a prova. Eu não disse que ele tinha que fazer, eu não disse que ele ia fazer, eu disse que ele podia fazer. Ele não fez. Mas me deu uma carta, rimos e conversamos e talvez até atrapalhamos os outros colegas que estavam fazendo a prova. E ele me olhou nos olhos como quem quisesse que mais adultos fossem assim no mundo, de um jeito que a gente só vê nos meninos negros e pobres de 12 anos. Então todo mundo acabou a prova e começamos todos a comer biscoito e conversar. Até que a diretora poderosa e branca entrou na sala gritando e brigando como se precisasse conter grandes criminosos em potencial, que estavam comendo biscoitos. E eu me senti humilhada com eles. E mesmo depois de esclarecer o mal entendido e ela ter nos “autorizado” a comer eu não via mais os nossos olhos curiosos. O olhar do meu amiguinho atrevido, esperto e engraçado tinha ido embora. E o meu também.
Ah! Eu também me lembro de uma menina dizendo que gostava do meu cabelo, mas que não podia parar de alisar o dela, porque o dela não ia ficar igual. E porque ela não era bonita e o cabelo liso combinava melhor com o rosto dela, ficava mais discreto. E ela dizia discreto de um jeito que parecia que precisava chamar o mínimo de atenção possível. Talvez ela não quisesse ser vista, talvez ela quisesse ser invisível. Talvez tivessem feito isso com ela durante toda a vida. Eu tentei explicar em uns 15 minutos no ônibus sobre os padrões de beleza e que não tem um modelo de cabelo black, que todos são lindos. Usei todos os discursos que a gente trabalha num processo de empoderamento: sistemática e resumidamente. Debate na faculdade é moleza pra quem tenta desconstruir e incentivar alguém minutos antes de chegar ao ponto final do ônibus. Eu falei tudo que poderia falar em pouco tempo e ela me olhou com um jeito de quem estava pensando e ia pensar mais. Mas na verdade eu só queria dizer mesmo que ela bonita. E eu só queria que mesmo quando eu não estivesse por perto ela acreditasse.
Lembro do rapaz que me assaltou. Eu não quis sair de perto dele porque não quis reproduzir um pré-julgamento racista e estereotipado. E ele apontou uma arma pra minha cabeça. E durante aquele tempo que parecia interminável eu senti que talvez a vida dele estivesse mais em risco do que a minha. Ele estava transtornado, provavelmente drogado e devendo. Ele me deu meus chips. E enquanto esperava o ônibus sair perguntou meu nome e disse que ia me dar outro telefone, outro melhor do que aquele. Ele sorriu, mas lembrou de alguma coisa ou viu algum fantasma e fechou a cara. E voltou a me xingar e disse que ia me matar. Mas de um jeito tão automático que eu sinceramente, mesmo com todo medo, não achei que ele faria. Quando disse que ia me dar outro telefone e pediu desculpas ele me olhou nos olhos, quando disse que ia me matar não.
Eu me lembro de uma coisa que muita gente deve lembrar: o vídeo do Gambá, ou melhor do dançarino Gualter Damasceno Rocha, tentando entrar num ônibus para sobreviver depois de um baile. Eu lembro do desespero daquela cena e sinceramente, odeio a pessoa que não abriu aquela porta. Se ele não fosse preto e pobre ele não teria morrido. Se alguém não tivesse achado que ele parecia perigoso ele não teria morrido. Ele deve ter ficado desesperado, ele deve ter sofrido muito. Falamos morreu, falamos da dor das pessoas em volta, mas o que me dói mesmo é pensar no que aquele garoto deve ter pensado e sentido na hora de morrer. Isso me corrói e me faz me sentir tão pequena, mas tão pequena.
Outra coisa que me vem na cabeça é a imagem de uma jovem. Muito bonita, negra, alta. Ela usava um top que me chamou atenção por parecer de carnaval. E achei que seu corpo era bonito e pensei “podia ser modelo”. Continuei andando no mesmo sentido que ela até que ela entrou em uma portinha no centro da cidade. Automaticamente olhei por curiosidade e vi uma placa que dizia “Venha relaxar – 25,00 a hora.”. Pensei na quantidade de coisas que dá para se fazer em uma hora. Tentei pensar que poderia ser uma opção, liberdade de escolha, uma atividade profissional. Mas aquela parte do centro da cidade é tão suja e precária…e 25,00 a hora… E pensei nela fazendo qualquer outra coisa ou pelo menos cobrando mais. Pensei nas meninas do dia da prova lá na Cidade de Deus que disseram que nem pensavam em fazer faculdade porque era muito difícil. Pensei no que é realmente escolha. E não descobri nada.
Tinha uma velha também. Uma velha que ficava perto da Central do Brasil com um monte de papelão e uns panos velhos. E tinha um carrinho de compras quebrado também. E ela ficava ali, sentada, lendo um livro. E isso me destruía e me confortava. Eu pensava se ela tinha família, se ela comia, como ela ia pro hospital se passasse mal. Ela já estava bem velha. Mas ver ela com o livro me dava a sensação de que se não podia correr pra fugir daqueles trapos ela se enfiava no livro e assim fugia. Romântico pensamento, provavelmente uma ilusão minha, porque o livro certamente não matava a fome dela. Um dia a velha sumiu e acho que ela deve ter morrido. E pode ter sido sozinha, pode ter sido sem atendimento médico, pode ter demorado, pode ter doído muito, pode ter sido muito triste ficar só e não ter ninguém pra ter ouvido suas últimas palavras. Deve ter sido um inferno não ter sido ouvida. Sempre lembro dela e tento, na minha ilusão poética, achar que ela entrou no livro pra sempre. Mas eu sei que não é verdade.
Me lembro de muito mais coisas e visões que eu nunca vou esquecer. E elas ficam indo e vindo na minha cabeça, rodando e fazendo uma bagunça que ultimamente não tem me deixado escrever.
Completando hoje 25 anos me sinto muito mais uma mistura delas do que alguma coisa que eu seja por mim mesma. Não vivi essas vidas, nem quero me apropriar das dores delas. Mas saber que elas existem ou existiram me dói e me leva à sentir uma pequena parte do peso delas dentro do meu.
Nem todas as pesquisas, nem todos os conceitos, nem todas as discussões me trazem mais certezas do que esses pequenos contatos com histórias que poderiam ser minhas. Sim, porque assim como todas as pessoas de quem eu me lembro, eu sou negra. E isso não em nada a ver com coincidência.
Acho que se alguém me perguntar hoje porque eu não paro com essa história de militância que é tão difícil, que machuca e cansa tanto eu respondo que é porque não é uma questão opção. Ser mulher negra e ter acesso a certas oportunidade de reflexão traz uma responsabilidade que não se pode negar. A gente vira isso: a mistura de muita gente na gente mesma de um jeito único e individual que só a gente sente, só a gente vê e só a gente pode usar para se fortalecer e resistir. É uma força que não pode ser desperdiçada, porque dela dependem a nossa e outras vidas.
Imagem destacada: Campanha Chega de Fiu fiu