*Banzo (do quimbundo mbanza, “aldeia”) era como se chamava o sentimento de melancolia em relação à terra natal e de aversão à privação da liberdade praticada contra a população negra no Brasil. Palavra usada quando sentiam saudades ou falta muito dolorosa de seu lugar de origem ou de uma pessoa em especial, muitos morriam de banzo, ou melhor, durante o período do banzo.
Minha mãe costuma dizer isso, quando percebe/sente minha voz mais baixa do que de costume nas ligações semanais. Considerando a distância geográfica, o “instinto” materno e sua ligação afinada com o plano espiritual, eu diria que ela acerta na maioria das vezes, pra não dizer sempre.
As meninas assassinadas na Nigéria, os atentados em Paris, a execução de um brasileiro na Indonésia. O sistema Cantareira em franco colapso, vinte mil professores da rede estadual de São Paulo estão desempregados sem a garantia de nenhum direito, uma quantidade sem precedentes de salas de aula fechadas.
Os responsáveis pelo incêndio da boate Kiss em Santa Maria, estão por aí, de mãos dadas com os responsáveis pelo sumiço Davi Fiúza em Salvador, Amarildo de Souza no Rio de Janeiro ou pela morte de Claudia Silva Ferreira; para o paredão só os participantes do BBB que aliás, já começou.
O mundo tem optado todas as manhãs pela desorganização e desalinho geral, a consciência do outro e a estrutura mínima é reduzida a cada anoitecer. A consequência é o caos que permeia e desmantela as relações validando os artífices usados para garantir a boa convivência entre nós, seres humanos. Humanos?
Nessa linha de procurar os motivos e vasculhar as respostas, das minhas dores e das fissuras do mundo, dentro da perspectiva viver-sobreviver-vencer, reflito sobre os dias que hão de vir, considerando que o carnaval nem chegou, a perspectiva se torna desoladora, o banzo me pegou pelo pé e me fez chorar.
Vivo num tabuleiro de xadrez onde cada passo, independente do oponente, me coloca de prontidão, como se precisasse estar pronta para alcançar o próximo ponto, pular o xeque mate do adversário e poder exibi-lo com orgulho.
Orgulho que vi estampado nos praticantes do candomblé em um debate sobre Intolerância Religiosa e Liberdade de Expressão. Orgulho que desmanchou meu coração, quando da janela da cozinha vi passar o Orixá em festa num dia de obrigação no terreiro.
Naquele momento de celebração à vida reconheci na dor da travessia, na violência, na perda de liberdade e da identidade todos os desgostos que o cativeiro gravou na história e que ainda se perpetua nesses 127 anos de abolição e a necessidade de recriar, refundamentar, reelaborar, ressignificar a essência do mundo de dentro e de fora de cada um de nós.
Romântico. Quase ridículo. Utópico. Urgente se ainda quisermos nos ver refletidos para próximas gerações.
Uma torrente de cansaço cobriu minha alma, dobrando meus joelhos frente a solidão em que vive a mulher negra, fruto do tripé hiperssexualização, machismo e preconceito, o desafio de garantir sustento, saúde e educação enfrentando as dificuldades de ser mãe solteira numa sociedade judaico-cristã, o se fazer respeitar sem alisar os cabelos ou disfarçar os traços da negritude que me é peculiar, via única que a sociedade oferece a quem se desveste para enfrenta-la.
Ali naquela fresta de janela, avistei o alaranjado das savanas, pude sentir o calor do sol de África, caminhar sobre a textura seca do solo, ouvindo o som dos cânticos da minha tribo e logo minhas narinas foram inundadas, pelo do cheiro da lenha queimando, misturada ao almiscarado do ar e o tempero que fumegava na aldeia próxima, minha alma foi abraçada pela noite fria e acalentada pelas estrelas de um céu único.
Respirei fundo e retornei para as atividades daquele dia que ainda nem raiara, e prometia ser de trabalho duro, com a esperança de que com o calor da aurora, o mundo talvez se desvirasse e meu banzo se dissolvesse igual enguiço de fazer feitiço.