Durante a minha vivência enquanto mulher e negra, não vi apresentados a mim mulheres como eu sendo produtoras de conhecimento, protagonista de espaços de poder. Para mulheres como eu, só restava os subempregos e a clandestinidade.
Quando me descobri negra, por volta dos 17 anos, me veio uma angústia, medo e talvez até depressão. Eu não suportava pessoas que não fossem negras falando sobre pessoas como eu, negras. Sempre achava, e ainda acho, que sabiam mais sobre a minha/nossa própria história, do que eu, do que nós mesmos. E talvez saibam de fato.
Digo isso, pois é recorrente em uma discussão sobre questões raciais e de gênero, na academia, tu – sujeito – negro ser questionado sobre sua fundamentação teórica sobre o tema. Afinal, tu não cursas história para saber isso que estás falando. EU, branco, curso, e sei que sei mais sobre a história da povo negro do que tu. Tu não cursas direito para saber sobre o sistema carcerário brasileiro. EU, branco, curso, e sei que sei mais sobre tu, e por ai vai.
É incrível como a vivência como sujeito negro na sociedade brasileira racista é ignorada nos espaços acadêmicos. Há exemplo dos trabalhos e pesquisas realizados dentro das Universidades, onde pesquisadores de questões raciais, em sua maioria, são brancos e não são capazes de enxergar o quão problemático isso é. Um pesquisador/acadêmico branco tem o poder de silenciar os poucos negros pesquisadores que estão nos espaços das Universidades somente pelo simples fato de serem brancos e serem mais legitimados nesses espaços do que negros.
Nunca vou me esquecer do dia em que um professor me questionou sobre meu turbante, que eu estava usando, isso ainda no ensino médio. Me questionou de forma invasiva e ofensiva se eu sabia o que aquilo significava. Eu respondi que não, não sabia, mas que me fazia bem. Ele me respondeu, disse que aquilo significava que eu estaria de “trabalho” para Umbanda se não me engano, o que continuou não fazer sentido para mim naquele momento.
Posteriormente àquele dia, descobri que esse professor me daria aula de sociologia. No dia de sua primeira aula, ele propôs uma breve apresentação dos alunos da minha turma, como a maioria dos professores faz no seu primeiro dia de aula. Eu não queria que chegasse a minha vez de falar, não gostava de falar para grandes grupos, e ainda não gosto. Foi inevitável, tive que me apresentar. As perguntas a serem respondidas eram simples: nome, idade e o que faz de interessante. Meu nome é Clara, tenho 18 anos e sou clandestina, acho que foi mais ou menos essa a minha resposta. Ele me perguntou por que eu era clandestina. Eu o respondi de forma simples: a juventude negra é criminalizada no nosso país professor. Ele não ficou satisfeito, queria que eu respondesse com dados, que essa minha colocação era infundada, logo era sem nenhuma importância. Fui deslegitimada, o que me doeu, e muito. Doeu porque só havia três pessoas negras em uma turma de 30 alunos.
Naquele momento perdi meu chão por alguns segundos, não compreendia como um professor de sociologia que se dizia de “esquerda” não compreendia aquilo, e fez da situação uma forma de agressão psicológica.
Mas refutei. Disse que não precisava de dados quantitativos e nem realizar uma pesquisa para saber da condição da maioria da população negra. Disse que estava nessa condição, clandestina, porque, naquele momento, só havia três alunos negros numa turma de 30 alunos. Respondi que era clandestina porque as trabalhadoras da limpeza da escola era maioria mulher e negra, respondi que a periferia (bairro/vila) que se localizava atrás da escola era negra e que eu não tive um professor negro. O assunto cessou depois disso.
Quando tu assumes tua identidade és colocada a prova a todo o momento sobre tua existência. No trabalho, quando querem fazer referência a algo racista ou fazer uma simples pergunta sobre negros e negras me chamam, como se a mulher negra estive sempre à disposição das demandas da branquitude e tivesse que servi-los. Pois é claro, aquela é a mulher do movimento negro, metida, que sabe de si, vamos expô-la, provar que ela não sabe sobre sua condição enquanto mulher e negra, nós brancos é que sabemos. Quando uma mulher negra empoderada ocupa locais que não são os predestinados a ela fica mais fácil expô-la, pois sabem que ela não é mais conivente com situações de violência e desrespeito. Assim, fazendo de tudo para desgastar sua estabilidade, paciência e arrisco a dizer até sanidade.
Torna-se fácil dizer que a negra não sabe da sua própria condição e história em um contexto educacional em que somente se estuda o negro no período colonial, e nos dias 13 de maio e 20 de novembro.
Me perguntam com frequência por que eu me importo tanto com a representatividade de pessoas negras nos espaços do ensino básico e superior. A minha resposta é sempre a mesma: como um sujeito vai formar sua identidade se pessoas como ele não são apresentadas e representadas nos espaços de ensino além da tia da limpeza e do refeitório? Espaços esses em que um aluno passa maior parte de seu tempo e que é decisivo para sua formação. Espaço esse, (apesar de sabermos em quais moldes se formou e a quem está servindo), privilegiado, onde podemos atingir de forma positiva se quisermos cada aluno negro e negra, para um nova formação anti-racista, machista, homofóbica, transfóbica na educação.
Agora fica a questão: como fazer com que o ensino básico e superior se torne uma ferramenta contra o racismo se temos uma estrutura curricular rígida, em todas as matérias, que não ensina a história afro-brasileira e não fala sobre os espaços ocupados em sua maioria por pessoas negras: a periferia, os subempregos, as cadeias, a prostituição?
Precisamos formar profissionais da educação que sejam capazes de lidar com a pluralidade de sujeitos nos espaços educacionais (que não se restringem a escola e Universidade). Caso isso não aconteça junto a nossa representatividade nesses espaços, o estudo teórico da academia branca sobre a nossa história continuará falando mais alto que a vivência das pessoas negras, e principalmente das mulheres periféricas.
Eis a questão: Se não me espelhou? Não chamo de educação – Ellen Oléria