Muito tem se falado sobre moda e estética afro. Entendo que a primeira perpassa pela segunda. Para entendermos isso, temos que buscar então o que vem a significar uma coisa e outra.
Moda é uma palavra que deriva do latim MODUS. Quer dizer o modo (passageiro e mutável), a forma de se comportar (vestir, calçar, adereçar) que se traduz, consequentemente, numa tendência de consumo daquele momento. É, portanto, um fenômeno sociocultural que expressa valores de determinada sociedade.
ESTÉTICA – é uma palavra grega que quer dizer sensação, percepção. É, dentro da ciência, um ramo da filosofia cujo objeto é o estudo do belo, do seu inverso que é a ausência da beleza e do sentimento que um ou outro causa em nós. Falar do que é belo ou não é relativo, ou deveria sê-lo, por que quaisquer sociedades acabam criando padrões estéticos.
O que vestimos acaba por traduzir como nos vemos ou pelo menos como queremos ser vistos. Nossas vestimentas, adereços e cabelo, transmitem a noção de estética que queremos construir ou mesmo a que temos por uma imposição social. Deste modo, a estética faz parte da estrutura da nossa identidade.
Por IDENTIDADE podemos entender que seja o aspecto coletivo de um conjunto de características pelas quais algo ou alguém é definitivamente reconhecível, conhecido; é um conjunto de elementos que permitem saber quem uma pessoa é. Pelo próprio processo histórico de colonização e escravização, há uma dificuldade na definição e no desenho da identidade negra ainda nos dias atuais. Ao tempo da escravidão, a produção da identidade negra nas Américas deu-se por meio de processos paralelos; pela via da Desafricanização e pela Racialização. Os africanos aqui escravizados foram forçados a esquecer suas origens, para assumirem a sua condição subalterna de “negros”.
Desafricanização é nas palavras de Nei Lopes : “o processo através do qual se tiram ou se procura tirar de um tema ou de um indivíduo os conteúdos que o identificam como de origem africana. Processo psicológico e cultural de desconstrução da identidade dos africanos e seus descendentes em diáspora”.
Esse processo começava no continente de origem, com conversões forçadas ao cristianismo, antes do embarque. Seguia-se a adoção compulsória do nome cristão, bem como do sobrenome do dono, o que representava, para o africano, verdadeira e trágica amputação“.
É nesse sentido que as religiões de matrizes africanas são essenciais no processo de reabilitação dos povos negros em Diáspora. Aliás, aqui no Brasil, foi o Candomblé o grande alicerce, não só da resistência dos africanos escravizados, como da construção da cultura e religiosidade brasileiras. É dentro do Candomblé que através do culto à ancestralidade, revisitamos a música, a dança, a comida e, obviamente, a estética. É certo que muitas das vestimentas do Candomblé já sofreram influência das vestimentas européias (o uso de anáguas, por exemplo). Mas ainda assim conseguimos tirar um saldo nesse aspecto. O turbante que hoje virou moda e é usado até em passarelas, tem origem desconhecida e, obviamente, não posso relacionar apenas à cultura africana, por que na Índia e em países mulçumanos fora da África também se faz uso dele. Contudo, não há como negar que esse boom nas passarelas da moda se deu sob a influência do comportamento afirmativo das/negras.
Os blocos afros que surgiram no seio das religiões de matrizes africanas, trouxeram, para a Bahia especificamente, essa novidade das vestimentas inspiradas nos africanos, com amarrações de panos pelo corpo e na cabeça: uma tentativa de reafricanizar a nossa imagem. Era, portanto, um ato político-ideológico. Com o passar do tempo, as vestimentas saíram das cordas destes blocos e ganharam as ruas. Mas a todo tempo, quem não buscava uma identidade negra, pra não dizer que era feio, chamava de exótico. Nossa identidade era folclórica.
Ai é que eu afirmo que avançamos, mas ainda estamos num campo perigoso. Por que ser socialmente aceito como exótico, não é lá uma vantagem. É “menos pior” do que ser rejeitado, mas ainda não é uma liberdade plena conquistada. A moda afro ter avançado no mercado tem, no momento, que conviver com essa faca de dois gumes: sair de territórios demarcados para galgar uma universalidade, mas em contrapartida ainda não ser encarado com naturalidade: ser sempre a moda do OUSADO, do super fashion, do Cult, menos o traje de uma identidade afirmada.
Aliás, essa questão do ser exótico nos remete à questão da apropriação dessa estética afro por não-negros/as. Não que haja uma objeção da adoção dos elementos da estética negra, o problema é com que intenção e de que forma isso se opera. É importante que tenhamos cuidado para que esse uso não escamoteie o seu fundo ideológico ganhe cunho meramente mercadológico. Não, não há problema em mercantilizar a produção da moda afro, muito pelo contrário, negras/os precisam de dinheiro para sobreviver em qualquer sociedade capitalista e temos mesmo que ser empreendedores. A questão é: quem está lucrando com isso? Somos nós mesmos? A quem interessa que a estética negra seja apenas moda afro?
Quando falamos de identidade, não podemos também esquecer a nossa identificação não só com nossas origens, como também com o outro e com o espaço em que vivemos/freqüentamos. É isso que vai, inclusive dizer o que é belo e o que não é. O que é esteticamente aceitável??? É também essa identificação no outro que não nos permitiria adotar posturas racistas , como policiais negros que adotam padrões de marginais, padrões de possíveis vítimas, numa redução Lombrosiana da realidade.
Ao desapontar os padrões estéticos estabelecidos, estamos caminhando em busca de LIBERDADES… Sim, eu acho que não buscamos uma liberdade só, e sim várias delas, até por que nossas amarras são diversas. O alcance dessas liberdades sempre perpassam pela questão estética, por que pode parecer distante, mas é nessa percepção do que é belo e do que não é, que nos identificamos. Muitas das pautas dos movimentos negros são frustradas por essa deficiência nas relações identitárias. Quando não nos identificamos no outro, não conseguimos perceber que estamos falando a mesma língua, que estamos sendo submetidos aos mesmos moldes de opressões e isso dificulta a união de forças em prol de uma série de políticas públicas, por exemplo. E se falamos de liberdades, sabemos que NÃO EXISTEM LIBERDADES DOADAS.
É nesse sentindo que afirmo que a Estética é também um campo importante da nossa militância. Nossas liberdades começam a ser buscadas à medida que nossa identidade é firmada e nossos olhares quanto ao belo e não-belo nos aproxime e fortaleça. Mas é interessante que esse olhar sobre o outro seja constante e que a estética seja construída em bases sólidas para que não se restrinja à moda. Como eu disse no início, moda é uma forma de se comportar momentânea, ou seja, passa. E nossa identidade não pode sofrer as oscilações que tem o mercado e o consumo.
NOTAS
[1] Lopes, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, 2004, São Paulo, Selo Negro. [2] A propósito, quero ressaltar que uso a expressão “postura racista” justamente por não concordar que negros/as sejam racistas. Acredito que, diante de uma educação (formal e informal) racista, não há como não reproduzir posturas racistas. Para mim, há uma impossibilidade lógica usar o adjetivo racista relacionado ao substantivo negro/a, tal como o é usar o adjetivo machista para mulheres, tal como o adjetivo homofóbico para os homossexuais e assim por diante. [3] Referência a Cesare Lombroso: psiquiatra e antropólogo italiano; teórico da frenologia que entende ser capaz de determinar o caráter, personalidade e grau de criminalidade dos homens pelo formato da cabeça; autor de O Homem Delinqüente.IMAGENS
Imagem 1: Foto de Felipe Hellmeister retirada da página http://www.salvadorupdate.com/ssaup/ensaio-do-ile-aiye/
Imagem 2: Para a Marie Claire Austrália reproduzida da página: http://365salvador.wordpress.com/2013/02/21/21-de-fevereiro-turbante/