Por Mabia Barros para o Blogueiras Negras
Pois é. Este post faz parte da blogagem coletiva pelos 125 anos de abolição da escravatura e o meu tema é a abolição da chapinha. Surreal ter um post aqui discutindo estética, cabelo, não é? Consigo imaginar alguns pensando “Mas poxa, num blog tão politizado, porquê discutir algo tão ‘menor’ quanto a aparência?”. No entanto, vamos voltar no tempo? Quando, em 1888, a Lei Áurea foi assinada, apesar de muito simbólico em termos legais, sabemos (ou não haveria necessidade de blogagens coletivas ou, ainda, deste blog) que a libertação do povo negro foi se dando aos poucos, com passos de formiga e sem vontade. Depois de 300 anos de opressão e escravidão, não seria de uma hora para outra que o papel do negro na sociedade “livre” brasileira teria algum destaque ou dignidade. Desde então, viemos aprendendo a andar de cabeça erguida, sem medo da chibata ou com vergonha de ser quem somos. Mas é um aprendizado, este também, lento. Bem lento. E cercado de necessidades muitas de se ajustar, de pertencer à sociedade e não ficar à margem, de pertencimento, de inclusão, dos problemas de adaptação e, claro, dessa nossa mania brasileira de dizer que o Brasil não é um país racista, que aqui isso não existe, que somos “pacíficos”…
Um dos símbolos da negritude, da carga genética que carregamos, é o cabelo. Podemos ter vindo de regiões diferentes da África e por isso termos narizes mais ou menos finos, lábios mais ou menos carnudos. Mas o cabelo crespo, seco, “duro”, é uma marca difícil de lidar (ou querem nos fazer acreditar que sim). A recomendação, até o começo do séc. XX era a de manter curta. Como a lida no trabalho era pesada, não havia tempo para os cuidados necessários com o cabelo (uma frescura, aliás, visto que a população passava fome, mal tinha onde dormir, o que vestir, onde comer) e o emboladinho estava lá, distinguindo socialmente quem podia e quem não podia “se arrumar”. Também servia para separar quem tinha educação e emprego dos que eram pobres, iletrados, desempregados. Daí, no começo do século XX, se popularizou o ferro ou chapinha. Um pente ou chapa feito de ferro que era esquentado no fogo, antes à lenha, depois na boca do fogão. É o precursor das chapinhas e pranchas elétricas modernas, mas todas elas fazem a mesma coisa. Alisam os fios, ainda que temporariamente. Toda esta discussão porque, quero que você, leitor, faça uma reflexão e me diga (pode postar aí nos comentários): Quantas mulheres negras não alisadas você vê no seu ambiente de trabalho? E na sua turma da escola/faculdade? Some, agora, quantas você vê na TV. E nos consultórios médicos? Em hospitais, em fóruns e escritórios de advocacia, em padarias, em supermercados (trabalhando ou fazendo compras)?
Isto por que o movimento de libertação e liberação dos cachos é recente. Eu cresci ouvindo que ter cabelo duro é ruim, que dá trabalho. Que eu precisava domar meu cabelo. Ouvi em casa, ouvi na rua. Me colocaram o apelido de Jackson 5. E Michael Jackson. Hoje em dia, claro, teria eu outra leitura e ficaria orgulhosa da comparação, mas aos 6 anos, achava uma afronta me acharem “feia”. Não culpo ninguém especificamente, mas culpo a todos como sociedade. Por que ter cabelo crespo, afinal, sempre foi um grande “erro”. Para a sociedade segregada dos anos 1950 nos EUA, além das luvas brancas, as mulheres negras já alisavam seus cabelos. As brasileiras usavam henê. Todas já conheciam o ferro. Esticar os fios para que estes ficassem maleáveis era necessário para ser aceito. Sinal de “capricho”. Sinal de que você se esforça para se enquadrar. Nos anos 1970 o movimento Black Power, pela primeira vez na história, começou a incutir na cabeça das pessoas que ser negro é lindo. Que o cabelo afro é lindo. Assim como em movimentos feministas, não é desmerecer o branco, é mostrar ao negro que ele TEM VALOR! Não precisa mudar para o merecer. JÁ NASCE TENDO VALOR. Voltando ao black power, que acabou virando o nome do penteado, este foi um primeiro momento de enaltecimento das raízes negras. Mas, infelizmente, acabou ficando apenas no folclore de uma década.
A diferença, a meu ver, para o Movimento Natural, é um amadurecimento político. Já foi dito em outros posts aqui, mas se você que está aí lendo este texto ainda não sabe, lá vai: fazer escolhas para a sua vida e o seu corpo é fazer política. E o que o movimento, que vem ganhando força mundo a fora desde 2009, especialmente na Europa, prega é a libertação. É um posicionamento político dizer: “Sou livre para viver, logo não aliso meus cachos”, mas também é um movimento de identidade e aceitação. É um movimento de autoestima. Crescemos acreditando tanto que ser livre é poder escolher ter o cabelo que quer, da cor que quer, desde que mudemos e não sejamos crespas, que perdemos a perspectiva mais simples: por quê odiamos tanto nosso cabelo? Ele é seco? Sim. Tem volume? Sim. Qual o problema? Será que não podemos ver que é, como tudo na vida, uma questão de paradigma? Mas o paradigma a que estamos acostumados é o liso, branco, da mocinha da tv, que corre e os cabelos balançam ao vento. Como explicar a uma pessoa adulta que sempre sonhou com cabelos ao vento que ele não vai balançar no vento? 😉 O que o movimento têm conseguido mostrar e conscientizar, com trabalho de formiguinha, é que o nosso cabelo faz parte da nossa cultura genética, da nossa identidade cultural. E é lindo. Com volume, com cachinhos, sem cachear… Dá algum trabalho largar a química. Dá medo. Todos torcem contra, dizem que você não vai conseguir ficar sem. Que dói, que coça, que o cabelo é feio, que fede, que dá trabalho… Mas aqui estou eu, há mais de 2 anos. E sem a menor vontade de parar.
E aqui eu chego ao motivo principal deste post se encaixar na semana que fala de libertação e de escravidão. Dos 125 anos “libertos”, até hoje somos escravos dos cabelos. Sei que meu crespo não é aceito em vários ambientes. Se saio de turbante, pior ainda! Dos 125 de lei Áurea, tenho pouco mais de 2 anos vivendo meu corpo como ele realmente é. Não vou ser hipócrita e dizer que a indústria cosmética/farmacêutica jamais vai me afetar novamente, mas eu ao menos sei com quem estou lutando. Ainda tenho medo de parecer velha (o grande mal da nossa geração, na espetacularização midiática), mas não tenho medo de ser crespa. De ser negra. Esta é minha identidade, ou ao menos parte dela. E hoje comemoro os pouco mais de 2 anos de liberdade, não os 125 anos que estão lá naquele papel de D. Isabel. E também comemoro o fato de que muito mais pessoas começam a entender que gostar do próprio cabelo, do próprio corpo, é um problema que diz respeito ao grupo em que vivem, às pressões sociais, aos gostos adquiridos. Não nascemos amando ou odiando o cabelo crespo. Aprendemos isso ao longo da vida. Que tal reaprender a amar o seu?
Vejam abaixo o documentário Transição, da Zina Saro-Wiwa, uma cineasta britano-nigeriana que mora no Brooklyn (NYC-EUA), mostra o seu processo de transição para o cabelo natural.
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Mabia Barros escreve sobre moda no Maxibolsa e está no twitter.
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