Essa semana vivemos mais episódios de racismo explícito diante dos veículos de comunicação e das redes sociais. Um verdadeiro show de horrores! Primeiro o apresentador e humorista do Sistema Brasileiro de Televisão se propondo novamente a ridicularizar e menosprezar pessoas negras, incluindo a sua própria funcionária, fazendo Black Face em seu programa, expondo Juliana de Oliveira, sua assistente, a opressão vexatória.
Para quem ainda não entendeu Black Face é racismo, uma prática antiga do teatro e que é basicamente feita por pessoas brancas que, no auge dos seus privilégios, zombam o negro quando fazem uma caricatura estereotipada de nós, ou melhor dizendo, do que imaginam ser o negro, reforçando nossas características físicas que se sobressaem aos olhos racistas, com intuito de zombar, fazer piada e provocar risos.
“A origem do black face é facilmente encontrada em qualquer site de busca, o retrato caricato do indivíduo negro, com reforço de estereótipos criados e perpetuados pelo homem branco. A tentativa de padronização dos nossos corpos, do nosso cabelo, da nossa pele. Além da forma pouco sutil e muito eficaz de manter atores negros longe dos palcos. As peças eram geralmente de chacota. O foco da risada: o personagem “negro”. O público alvo: sulistas estadunidenses em sua maioria, ex escravistas. Vou ressaltar que o objetivo original do black face era não somente a ridicularização do ser negro através de uma caricatura exagerada, mas também impossibilitar que indivíduos negros fossem capazes de representar a si mesmos.” Explica, Stéphanie Paes no seu texto Nega Maluca: black face é racismo e entender que utilizar-se dessa técnica é, sobretudo, contribuir para a manutenção do pensamento racista e tolhedor dos espaços a serem ocupados, onde o papel dos formadores de opinião, criadores, artistas e intelectuais das diversas áreas da arte e humor se faz crucial para a mudança.
Alguns poucos devem se lembrar do que aconteceu recentemente nos EUA quando uma das estrelas da Univisión, o apresentador Rodner Figueroa, foi demitido por racismo: falando sobre Michelle Obama, Rodner afirmou “ela poderia fazer parte do elenco de Planetas dos Macacos”.
Ele escreveu um pedido de desculpas público para Primeira Dama e logo em seguida foi demitido. Não houve debate algum sobre liberdade de expressão, democracia ou o que quer que seja. Ficou claro que havia racismo naquela fala e que manter um apresentador com essa opinião, mesmo sendo um sucesso de audiência, é inimaginável para a Univisión.
Por aqui, não só é possível como é vantajoso manter alguém do quilate do Sr. Gentilli num programa dito de humor, onde anunciantes e patrocinadores não movem uma palha ao ter suas imagens vinculadas a esse tipo racista de humor; onde diretores, roteiristas e produtores se sentem confortáveis ao ver piadas e risos extraídos a partir de racismos e misoginias – como é o que acontece com Juliana Oliveira – contidos nas suas máscaras negras, pintadas em peles alvíssimas de privilégio.
Talvez a companhia de teatro Os Fofos Encenam também não saiba ou faça vista grossa ao racismo impregnado na utilização de black face. Isso até sua peça “A mulher do Trem” ser anunciada na Terça Tem Teatro do Itaú Cultural.
O que leva uma marca a promover sem titubear espetáculos como esse? É possível pensar que não há nenhum tipo de avaliação, curadoria ou preocupação da instituição ao promover e vincular expressões artísticas e culturais racistas, machistas, homofóbicas a sua imagem de marca?
Ao ver a imagem que anunciava a publicação, militantes se manifestaram em peso contra o racismo promovido pela companhia teatral. Foi criado um evento na rede social (Terça Feira SEM Teatro), entendendo que essa é uma das formas de manifestar repúdio, além de, por exemplo, ir até a frente do espaço gritar que racistas não passarão. Entretanto, isso não foi preciso e com nossa manifestação virtual a tal peça foi cancelada. A resposta do Itaú Cultural veio logo em seguida, pretendendo promover um espaço de debate no dia 12, data em que a peça seria encenada.
Entretanto diversos atores e simpatizantes do grupo atacaram todos os membros do movimento negro, manifestando sua indignação e expondo abertamente seus racismos e classimos introjetados. Pois bem, queremos elucidar alguns PONTOS através desse texto:
1- Black Face é racismo, queiram pessoas brancas ou não, e nós não vamos mais tolerar isso;
2- A peça A mulher do Trem é racista. Mesmo que as pessoas brancas acreditem que não.
A companhia Os Fofos Encena ainda a define como:
“Inspirada na saudade dos bons e velhos tempos do Brasil bonachão pequeno-burguês, o espetáculo tem como cenário a sala de visitas de uma casa da classe média, na qual desfilam os tipos costumeiros: a sogra ditadora, o pai acuado e libertino, o galã, a ingênua, o amigo bêbado e sua esposa que trai e é traída, a prostituta de luxo, o impertinente, os empregados intrometidos; ou seja, desfilam pelo texto todos os personagens típicos da dramaturgia da época“.
Se fizermos juntos uma viagem de volta aos tempos de um Brasil Colonial onde a imagem do negro sempre foi associada a adjetivos negativos e se voltarmos ao Brasil de hoje, onde vemos tal peça teatral utilizar o termo “empregados intrometidos“, é possível notar a proposta racista e elitista do grupo, que reforça a ideia da negra enquanto serva e passível de maus tratos, e pior, usa o termo “intrometidos” para designar empregados, profissão que, no Brasil, está diretamente ligada ao excesso de mão de obra negra, pós abolição. Não tínhamos chances de ascensão social, nos cabia então a exploração e humilhação na mão dos “patrões”.
3- Academicismo não é resposta, mesmo que alguns atores queiram usá-la; as frases “vocês são limitados”, prints de páginas de livros nos indicando “mais leitura” para compreensão da peça ou ofensas como “vocês são antas” só deixa mais óbvio como a companhia que se diz tão livre, aberta ao diálogo, ignora o apontamento de racismo e usa seus admiradores como escudo para exposição de uma opinião desonesta e academista. Além disso, pedem paz e “mais amor”. Numa sociedade onde as amarras da senzala ainda marcam nosso dia a dia, será que a paz tem que ser pedida a nós? Ou para com o mundo em relação a nós? Nós é que precisamos de um dia de paz, sem ter que entrar numa rede social e nos ver motivo de chacota, por quem nunca vestiu de fato a nossa pele.
4- A desonestidade dos comentários é ABSURDA, estamos argumentando numa discussão com pessoas que não entendem o básico, a saber que racismo contra brancos não existe!
É essa a elite culta e intelectual que frequenta espaços teatrais? Sim é essa, afinal ninguém até agora tinha se manifestado sobre essa peça, até termos nos mobilizado. Parece que brancos não veem nenhum problema em rir de negros, ou pior não veem problema nenhum nos argumentos falaciosos proferidos para se defenderem, aliás, prática comum entre opressores: a de se defenderem e usar a tentativa de se colocar como vítimas. O Fofos se dizem censurados, achamos até engraçado – eis a piada!- acreditar que negros censuram pessoas quando se negam a aceitar racismo e achamos pior ainda todas as justificativas que precisamos ler, vindas dessas pessoas.
O que está sendo feito não é arte, teatro, crítica, é só racismo.
E nós tivemos que lidar com muito cinismo e mais racismo, com pessoas brancas querendo definir o que é ou não racismo, baseadas nas suas experiências de relações pessoais.
A própria companhia lançou uma nota que dizia:
“A máscara do negro foi forjada por todos os circos e em todos eles apresenta as mesmas características (assim como a máscara da ingênua, do galã, da patroa megera, etc)”
Não é compreensível rebater críticas de racismo reforçando a ideia principal de que black face é fazer rir de um estereótipo de negro, até porque não somos todos iguais e muito menos se pode entender como comparar ser negro com ser megera, algo que seria relacionado a caráter e não a raça/etnia. Parece que até para lançar notas é mais fácil ser racista do que redigir um simples: “Desculpa, erramos e queremos melhorar, obrigado pelo apontamento.”
5- E por fim, o último ponto: O povo negro precisa ocupar espaços; esperamos que o Itaú esteja aberto para grupos negros de teatro, engajados e comprometidos de fato com um teatro que constrói “crítica social”, ao contrário de alguns que a isso se propõem utilizando black face, sendo essa inclusive a única piada que causa risos. Hoje o povo negro busca ter voz através dos meios que lhes são possíveis e por isso NÃO NOS CALAREMOS e não vamos mais aceitar essas pequenas grandes opressões diárias, que nos impedem até de relaxar e rir vendo teatro.
O teatro é informação, questionamento e a expressa o pensamento vigente de uma sociedade. Nós ainda estamos em pleno 2015 lutando para ser representados de forma digna e fiel ao que somos, grandes guerreiros num contexto racista, de um Brasil erguido nas bases da escravidão e da nossa exploração, por isso NUNCA confundam nossas manifestações que lhes parecem raivosas com a opressão vinda de pessoas que ignoram todo nosso contexto social e nos usam para o riso, seja uma Companhia de teatro nada fofa, seja um comediante que faz da opressão em TV aberta sua fonte de renda.
Imagem destacada: imagem da peça A Mulherdo Trem, extraída do site Lugar de Mulher.