A construção da identidade inicia-se na mais tenra idade e é influenciada pelas relações que estabelecemos com o mundo e com aqueles que nos cercam, desde os familiares até os coleguinhas de escola, professores, vizinhos etc. Como afirma Stuart Hall, a identidade está sempre em processo de construção, ela nunca é completamente definida, intacta, mas vai se constituindo com o passar do tempo e das nossas experiências. Daí a possibilidade de pensar como se inicia o processo de construção da identidade em uma sociedade racista, como é o caso da sociedade brasileira.
Para propor essa discussão, gostaria de falar não apenas da minha experiência como mulher negra, mas de muitas alunas minhas que estão passando por esse processo de construção de identidade de forma dolorosa. Desde cedo nós estamos acostumadas com a falta de referência de pessoas negras bem sucedidas e bem representadas, seja em revistas, jornais, filmes, desenhos, histórias em quadrinhos, e muitas vezes até mesmo em nossa família e vizinhança. Quantas de nós não aprendeu dentro de casa que nosso cabelo dava muito trabalho e que a solução mais fácil seria relaxar para domar os volumes ou alisar? Não questionamos isso, porque para nós era um fato constatado, afinal nós sabíamos que nosso cabelo era realmente muito rebelde.
Quando chegamos na escola, começamos a nos preocupar em ter os nossos amiguinhos, queremos fazer parte de um grupo e aí descobrimos que nem tudo é tão fácil quanto parece. Algumas crianças não querem ficar perto de nós, nos dar a mão, nos abraçar, algumas riem do nosso cabelo, do nosso nariz, falam que a gente é feia, desleixada. Com algumas dificuldades, estabelecemos os nossos contatos, mas as experiências negativas estão lá dentro de nós e vão ter um efeito que descobriremos mais adiante.
Como o passar do tempo e da nossa experiência escolar, começamos a reparar nas outras meninas da nossa sala, e sempre tem aquela que é mais admirada, mais elogiada, mais bonita, e geralmente essa menina é muito diferente de nós. Seus traços são mais finos, seus cabelos, menos rebeldes, seus lábios, menos carnudos, sua pele, mais clara que a nossa. Ela se torna o nosso ideal de beleza, assim como outras atrizes ou modelos famosas, o modelo que seguimos pra ser mais popular na escola e na vizinhança.
Quando adentramos a puberdade, começamos a ficar mais vaidosas, queremos que as pessoas prestem atenção em nós, daí começamos a nos produzir mais para ir à escola, a usar maquiagem, a escolher roupas da moda, mudamos o nosso estilo e queremos passar uma imagem descolada. Então percebemos que isso não é o suficiente, que mesmo investindo bastante na nossa produção, não somos nós que a maioria dos meninos de nossa classe olha, mas sim aquela menina bem diferente de nós, com traços mais leves e uma beleza padrão, que nós conhecemos muito bem. Isso nos entristece, mas aí nos culpamos e tentamos entender os meninos, afinal nosso cabelo realmente não é muito agradável à vista mesmo, justificamos para nós mesmas. Daí começa a transformação.
No período de férias ou em um final de semana prolongado, fazemos o tão desejado relaxamento ou a tão almejada escova progressiva. Chegamos na escola achando que vamos arrasar e realmente muitos nos elogiam, dizem que agora estamos com um cabelo mais fácil de cuidar, com uma aparência mais arrumada, mas ainda persiste a nossa invisibilidade por parte dos meninos, seus olhares não buscam o nosso. Então percebemos que o cabelo não era o real motivo de eles prestarem atenção em nós, daí começamos a nos olhar no espelho, a ver TV, ler revistas e começamos a achar que somos mesmo feias, que ninguém olharia para nós, afinal nós temos traços grosseiros, não somos tão inteligentes quanto a menina popular que é sempre tão elogiada pelos professores.
Começamos a ficar mais introspectivas, a evitar os olhares das pessoas, a pensar bem antes de tomar qualquer atitude em público, a lutar para passar uma imagem de que somos moças boas, discretas, educadas, estudiosas, construímos uma imagem para mascarar aquilo que temos no nosso mais profundo íntimo: nosso sentimento de inferioridade. Então, começamos a aceitar as migalhas que as pessoas nos oferecem, sua amizade interessada, seu amor “livre”, em que apenas elas têm total liberdade enquanto nós estamos emocionalmente algemadas, aceitamos as metades que as pessoas nos oferecem e entendemos que elas não podem nos tratar como prioridade, já que elas têm tantas outras coisas pra fazer e tantos outros amigos mais interessantes.
Depois de um tempo adentramos o mercado de trabalho, no qual inicialmente encontramos alguma dificuldade, mas que entendemos, afinal de contas aquela moça loira da qual o recrutador não conseguia tirar os olhos e que passou na dinâmica de grupo para a vaga de recepcionista e, posteriormente, na entrevista, era mais interessante que nós, tinha mais qualificações para o cargo, mesmo seu perfil profissional sendo igual ao nosso.
Nos contentamos com a mão que bate, porque depois ela nos afaga. Nos contentamos com as palavras que ferem, porque elas são seguidas de desculpas. Nos contentamos com atitudes de desprezo, porque elas são compreensíveis em alguns momentos. Nos contentamos em ser a amiga nos momentos da solidão e esperamos que esse nosso “amigo” um dia nos peça em namoro.
Mas essa aparente situação de conforto não se mantém para sempre, um dia todo o rio de mágoas bem guardadas no nosso recôncavo mais íntimo vem à tona, entramos em parafuso, em depressão, e buscamos ajuda para nos entender e para voltar à “normalidade”. Então descobrimos que estamos fracas, inseguras e precisamos nos reerguer. Lemos livros de autoajuda, procuramos psicólogos, tomamos uma bebida num boteco para afogar as mágoas, mas eis que elas surgem novamente no dia seguinte.
Então percebemos depois de algum tempo, de algumas cabeçadas, que a mudança tem que vir de dentro, que ela não surgirá de palavras de autoajuda, de tragos de um cigarro qualquer, de shots de tequila, mas da aceitação de nós mesmas e de nossa imposição no mundo, negando-nos a aceitar migalhas e a nos contentar com pouco. Uma mudança inicialmente imperceptível começa a ocorrer, é a nossa identidade em construção, redefinindo-se, modificando-se, saindo da zona de conforto e adentrando a zona de confronto com nós mesmas e com a sociedade racista e machista que nos educou para acreditar que somos inferiores, somos a carne mais barata do mercado.
imagem destacada: Mulher Negra e O Feminismo Fanpage