Se você ainda acredita que somos todos iguais em tudo e que o que importa é o sangue vermelho que corre abaixo de todas as pele, é bem provável que você esteja confortável no seu lugar de privilégio ou que você (negrx) esteja adoecido com as dores do racismo ao ponto de acreditar que não falar dele é a solução.
Eu publiquei uma foto no Facebook e fui vítima de uma série de ataques racistas. Muitos pensaram que tudo era resposta a alguma atitude minha ou que tinham alguma motivação pessoal. Não era. Mesmo se tudo isso se confirmasse não tem a menor importância. É racismo! Puro! Cruel! Escancarado!
Desde o dia 1º de maio de 2015, tenho recebido diversas manifestações de apoio por meio das mídias sociais, telefonemas e conversas informais. O volume de mensagens e comentários positivos se tornou imensurável. O respeito e o carinho das pessoas me fizeram mais forte nessa jornada.
O padrão da maioria dos textos era “Mas ela é linda”, “Como puderam fazer isso com uma moça bonita dessas?” ou “É inveja. Ela é linda”. Com o passar dos dias, os comentários acerca do racismo foram se transformando em um debate sobre ser ou não ser linda. Embora exista uma boa intenção e afeto da maioria das pessoas, essas palavras me deixaram especialmente inquieta e suscitaram questões dentro de mim.
A primeira questão foi perceber a perplexidade de algumas pessoas nos comentários de “mas ela é linda!”. Como se ser preta e linda fosse algo extraordinário e incomum. Uma contradição perturbadora. Um contrassenso até. Gente, não é verdade!
E aí me veio outro pensamento: E se eu não fosse “linda”? E se eu fosse uma mulher considerada feia? Neste caso tudo bem sofrer racismo? É como se ser feia significasse abrir um precedente para a opressão racista ou até mesmo merecer passar por este tipo de violência. Obviamente, isso é um absurdo! Ser entendida por alguns como uma mulher bonita, mesmo nesta sociedade com padrões eurocêntricos, não me faz imune ao racismo.
Houve aqueles que disseram que tudo era fruto de inveja. Pessoal, ao fazer um resgate breve da história é possível enumerar facilmente uma lista de violações às mulheres negras. Ser mulher negra é maravilhoso! Posso afirmar isso com a maior tranquilidade. Mas é bem improvável que alguém tenha inveja de ser uma mulher negra no Brasil. Este que é um país racista, excludente e machista que nos mata diariamente por meio da violência simbólica da não representação, da violência física, da violência psicológica, da violência sexual e tantas outras formas que não caberiam neste texto. É mais inacreditável ainda que a expressão dessa inveja seja reafirmar o conceito de que a mulher negra tem menor valor que qualquer outra pessoa e que assim a violência se faz justificada. Pera lá!
A repercussão dessa violência racial contra mim, uma mulher preta, escancarou a perversidade do pensamento racista ainda presente na sociedade brasileira. Diante da dimensão extrema dos termos descritos ali, houve quem acreditasse que minha conta era falsa, que tudo era parte uma estratégia de marketing de uma nova celebridade ou que os próprios racistas criaram o perfil para expressar ali suas práticas cruéis.
Pior que tudo isso, há quem ainda acredite que o saldo é positivo e que ser vítima de um crime na internet mudou a minha vida para melhor. Não há nem um pingo de alegria ou benesse em ser vítima de racismo. Não há proveito algum em ler e ver palavras e imagens racistas associadas à própria imagem.
Eu não cometi erro algum. Eu sou uma mulher preta e eu utilizei a minha conta pessoal no Facebook como eu tive vontade. O que escreveram – e ainda escrevem – na minha foto no Facebook reflete a ideologia racista acerca do corpo negro feminino e desconstrói o mito da democracia racial que persiste em deslegitimar a nossa luta.
12 comments
Gostei do texto, é de construção inteligente. Cristiane você sendo jovem, por acaso já pensou que os jovens pretos não se juntam! Por exemplo uma UJP – União de Jovens Pretos. Acredito que o caminho para povo preto passa pelo agrupamento da juventude. Espero um dia ler um texto seu compartilhado por outros jovens, incentivando a organização de associação de jovens.
Não podemos ficar passivos diante da ação racista no Brasil.
Ao menos, vc tem uma identidade. Toda essa discussão sobre etnias coloca à margem, pessoas que não têm definição. À cada dia, percebo que a sociedade obriga as pessoas a escolherem um de dois lados impostos. Sei que os mestiços não sofrem racismo (pelo menos não na maior parte do país), mas são colocados no meio de todo esse conflito étnico. Se optam por ser dito negros diante de uma manifestação, reconhecem a sua miscigenação; no entanto, se fazem o mesmo quando se inscrevem para um concurso, são taxados aproveitadores. Se se definem brancos, desprezam suas raízes. Na minha certidão, não tenho cor, não sou negra, não sou branca, sequer parda sou. No Nordeste, sou clara; no Sul, sou escura. O que define a minha cor? Meus lábios grosso? Meu cabelo ondulado? Minha cor amarela? Meu nariz arredondado? A classe social a que pertenço? Ou a de onde vieram meus pais? Cansada de coisa de “gente branca”! Cansada de coisa de “gente preta”! Por um mundo com mais gente colorida!
Perfeito comentário. Como mestiça, muitas vezes me sinto “no limbo”. Cansada dessa divisão em cores estruturadas. Por mais gente colorida e menos segregação.
O que é o ser racista a não ser a negação de si mesmo!
A natureza não nos fez iguais em nada, nem na cor e muito menos no pensamento.
O que seriamos nós se fossemos todos iguaizinhos uns aos outros, não existiria homem, não existiria mulher e muito menos trans. ou homo. A vida seria um, um que mesmo, não encontro uma definição para o que poderia ser isso.
Mas a natureza nos deu duas coisas que são semelhantes, um corpo e um cérebro capaz de distinguir essas diferenças entre uns e outros assim como, de perceber que temos algo em comum, a inteligência e a inteligência deveria nos mostrar que somos humanos de diferentes cores, de diferentes idiomas, de diferentes regiões porém com as mesmas necessidades de viver, amar e ser amado. E o que nos torna racistas, não seria negar a si mesmo? Racismo não seria a arma dos canalhas para conduzir milhões aos seus desejos mórbidos de poder, não seria uma degeneração do cérebro humano que é uma das poucas coisas semelhantes entre seres que se dizem humanos?
Para que racismo se temos os mesmos problemas, se temos as mesmas necessidades, não seria mais inteligente nos libertarmos desta prisão? O que é ser racista?
Juliana,
entendo a sua confusão e frustração, mas acho seu comentário “Ao menos vc tem uma identidade”, um enorme desrespeito, ainda que não tenha sido a sua intenção.
Eu também sou “mestiça”, termo que aliás abomino, e tenho que confessar que está me dando nos nervos, ver como pessoas como eu constantemente entram em discussões como essas para diminuir o discurso de pessoas com pele mais escura. Será que não dá pra perceber que, mesmo intencionalmente, você está repetindo o que o texto critica? Afinal “pelo menos ela tem identidade”, do mesmo modo poderíamos dizer “(mas) pelo menos você é linda, Cristiane”.
Me incomoda muito ver como no nosso meio, nós temos o costume de imediatamente calar quem denuncia, trazendo as nossas dores em formas de comparações. Toda dor é válida, tudo deve ser discutido e por isso mesmo você poderá encontrar outros textos que tematizam exatamente essas suas experiências por aqui. Dá uma procurada, eu tenho certeza de que eles vão te ajudar.
Então, Aline. O que eu quero dizer é que todos os que defendem agressivamente uma etnia propõem uma guerra onde todos são obrigados a escolher um lado. Quando aprendermos a valorizar PESSOAS e pararmos de enxergar apenas etnias, aí sim haverá menos ódio. A luta contra o racismo é uma luta de todos, inclusive de brancos que não são racistas. Quando eu disse “ao menos você tem uma identidade”, quero dizer que nessa guerra, seu lado já está definido, enquanto há pessoas, como nós, que estão no meio de tudo isso e não descobrem de que lado estão. Sou a favor de união da humanidade e não de segregação. Fico triste quando vejo excessos: diz-se que todo negro deve se relacionar com outro negro, que todo negro deve ser adepto a religiões africanas; assim também me vejo diante da bandeira da branquitude. Vejo tudo isso como limitação às liberdades individuais e o posicionamento étnico, infelizmente, afasta inclusive parte dos que deveria agregar. Como “mestiça” (isso me soa como a um animal), fico pairando entre esse conflito e percebo que de acordo com a conveniência de cada grupo, eu me encaixo ou não em cada um.
Todo preconceito é um tipo de deficiência intelectual, causada pelo aprendizado de valores errados, a partir da mais tenra idade. Doença que quanto mais aguda mais difícil de ser admitida.
Mas você é linda mesmo e isso é considerado como racismo? Então tenho que te chamar de feia só por ser negra? Então neste caso continuo achando você linda e quem não gostar que se dane. Seja feliz é só.
Quando soube o q aconteceu tive vontade de chorar. Na verdade chorei. Me emociono com injusticas com a fome com preconceito com o abandono e nao me calo pq um dia este choro vai ter q acabar.
o mas… é que mata, mas………….. a primeira coisa que me veio a cabeça quando vi a foto foi realmente: nossa que mulher linda! mas… (de novo), deve ser bem desagradavel ouvir isso neste vies que voce colocou, como se negritude e beleza fossem quase incompativeis. eu, branca, ouço comentarios a respeito de outras pessoas, que talvez, tenham pudor em fazer para voces (e esperam que tenham!) como: nem parece negra, é negra mas é bonita, tem traços finos, é uma neguinha bonita, etc. em tempo, gosto de vir aqui para descontruir o meu racismo.
Belo texto, concordo contigo, o Brasil foi, é e infelizmente demorará muito pra deixar de ser… É triste, mas as pessoas são racistas e as vezes nem se dão conta… Com comentários que tu sitaste, “mas é tão linda” e outros mais…. É triste, mas parabéns pela coragem. Abraço
A meu ver, embora a gente consiga entender a boa intenção das pessoas que dizem “mas ela é linda”, na verdade, o que estão fazendo é tentar combater o racismo com uma mistura inédita de machismo e inocência.