É complicado entender o que é se sentir negra no Estado de Minas Gerais. Desde que me entendi e me reconheci enquanto negra, me inseri em movimentos de negritude e me tornar uma negra em movimento, tenho me questionado acerca da identidade negra nesse estado. De acordo com os dados do IBGE em 2010, 53,5% da população mineira se auto-declara enquanto negra, somando pretos e pardos. No século XVIII, Minas foi o estado com maior número de escravizados explorados pela mineração. Sendo assim, a forma de trabalho dominante na sociedade mineira, foi a de abuso da mão de obra de africanos escravizados que já dominavam sofisticadas técnicas de extração e manipulação desses materiais. Em sua grande maioria os povos denominados bantus (o que hoje estima-se a região de Angola, Congo e Moçambique, conforme distribuição territorial dos colonizadores), os povos Africanos em Minas Gerais também constituíram inúmeros quilombos. Apesar da fama do Quilombo de Palmares e o reconhecimento do povo negro a seu merecido líder, Zumbi, Minas Gerais é onde se registrou o maior número de quilombos no Brasil. Mas não se vê, na maioria dos espaços, e na mídia diversa, a identidade negra mineira.
Os caminhos de exploração de ouro e pedras preciosas, deram origem as chamadas cidades históricas, em todas o que se percebe no ar é o cheiro e as marcas da escravidão e da desumanização negra. A estrada real, que seguia até o Rio de Janeiro e marcava os postos de coleta de impostos sobre a mineração, tornou-se um caminho turístico pra mineiridade que insiste em transformar seu histórico de racismo e exploração em “nosso patrimônio”. Eu os nego! É angustiante testemunhar que pessoas têm estômago para comer em antigas senzalas com correntes amostra, como acontece em Ouro Preto. É nauseante pensar que as pessoas ainda posam pra tirar fotos no pelourinho de Diamantina. Muito, mas muito decepcionante ainda, é perceber que a maioria dos museus de Minas que tratam da questão negra, são museus do escravo e não museus do povo negro. Reconheço o qual necessário é ainda hoje de falar sobre a escravidão. Mas será que é só isso que temos? Ainda são necessárias tantas imagens e representações do sofrimento de nosso povo? E nossa identidade e orgulho, cadê. Nossa africanidade, onde esconderam?
Quando viajo a outros estados e me apresento como mineira, as pessoas se espantam. Nem imaginam que em Minas Gerais tem negros. O que não é de se assustar quando se percebe que nem quem é natural do estado conseguem perceber que Minas é muito negra. Nas vinhetas televisivas, nas músicas cantadas pela intelectualidade burguesa mineira, nas propagandas do estado de divulgação para o Turismo, existe um fato: É como se fossemos uma miscelânea de brancos e brancas no estilo Paula Fernandes, enfeitados e adornados com pão de queijo. Mal sabem os amigos de outro estado, que pra gente que tá no centro da capital, possuir um queijo é quase que um troféu, de tão caro que o produto pode chegar a nós.
A realidade é que os Quilombos em Minas Gerais pedem socorro. Estão sendo engolidos pelas mineradoras, sendo expulsos de seus territórios e tendo sua identidade apagada brutalmente. Na capital, existe uma segregação explícita, onde separam espaços que cabem a negros e brancos. Com a política de branqueamento e higienização reforçada no mandato da atual prefeitura, moradores de favela estão sendo retirados de suas casas e forçados a ir para a região metropolitana, morando em cidades dormitórios, sem qualquer estrutura básica de saúde, transporte e educação.
O processo de formação do estado sempre estava diretamente ligado aos controles da igreja católica que hoje revezam seus abusos com igrejas evangélicas das mais diversas denominações. O resultado disso são vários terreiros sendo expulsos de Belo Horizonte e sendo obrigados a se “esconder” ou também a migrar para as áreas metropolitanas.
O mito da democracia racial em nosso estado se junta a tradicional família mineira colonizadora. E essa mistura potencializa o racismo no estado, forjando esse como o melhor lugar de se morar, mas escondendo o que perversamente se mantém sobre a população negra. A Polícia Mineira, considerada a melhor do Brasil, continua exterminando nossos jovens, a Universidade Federal ainda pertence aos herdeiros da república café com leite.
Não é estrada real, é caminho de escravização que marca todas as ladeiras e morros.
Oh! Minas Gerais. Suas ladeiras têm sangue demais. Oh! Minas Gerais
Imagem destacada: Mostra do Filme Livre
14 comments
Olá Melina, estava procurando algum material para um artigo que tenciono fazer e me deparei com seu texto, o qual li e gostei bastante e você está de parabéns. Sou formando em Geografia na UniBH e estou pretendendo escrever um artigo sobre a Estrada Real, mas, coincidindo com suas ideias pretendo abordar como você o verdadeiro significado do simbolo geográfico “Estrada Real”, essa enorme marca em nossa terra, e fazer uma crítica ao novo significado que está sendo construído. Permita-me discordar de você quando diz que nega esse patrimônio, negue o simbolo que é apresentado, pois, as cicatrizes em nossa terra, devem ser testemunhos irrefutáveis dos erros das gerações passadas, no caso da Estrada Real é sim nossa herança, mas como uma cicatriz que nos força lembrar que tais erros não devem ser cometidos novamente, então o que temos que mudar é como a sociedade vê e pensa sobre esses lugares. A Estrada Real deve sim ser lembrada e vendida, mas pelo seu verdadeiro significado, o sangue de um povo escravizado, a espoliação de uma nação, ou seja, algo que nos provoque reflexão e coragem para seguir em outra direção! Espero que eu tenha conseguido expor minhas ideias, e você possa entender meu ponto de vista! Novamente, parabéns pelo belo texto! Obrigado…
Massa o texto Mel. Ce tem alguns textos sobre os povos Bantus aqui em Minas Gerais, pra indicar?
Parabéns
Ei Vinícius, brigada querido. Tenho não, mas tô numa proposta de fazer uma pesquisa e te passo sim. O que tenho e mais simples e tals, até porque a própria nomenclatura Bantu é problematica por si só. Mais no geral, a enciclopédia de história da áfrica tem muita informação. Abraços.
um alento, talvez: a maior referência da música mineira está, não só na voz e na musicalidade, mas nos traços (perfil, boca, nariz, cabelos), de Milton Nascimento… há de se levar em conta essa representatividade, que não é pequena e que garante, há tempos, que a voz negra de minas seja ouvida, inclusive por uma elite branca que o venera.
Valeu pelo texto!
Texto maravilhoso, Melina! O Brasil (e muitos de nós aqui dentro) ainda vê Minas como aquele retrato em sépia na parede: a tradicional família mineira. Branquinha, patriarcal e católica. Isto aqui é uma mistura (longe, longe, uma lonjura mesmo! de ter acontecido de forma pacífica) lascada e a mídia ainda mostra “ioiôs e iaiás”.
Só uma ressalva, e gostaria de ouvir outras opiniões. Como estudante de História, este trecho me atraiu:
“A estrada real, que seguia até o Rio de Janeiro e marcava os postos de coleta de impostos sobre a mineração, tornou-se um caminho turístico pra mineiridade que insiste em transformar seu histórico de racismo e exploração em ‘nosso patrimônio’. Eu os nego!”
Dá pra negar o que a gente viveu? “Patrimônio” não é necessariamente uma glória, uma felicidade. Não significa que se está aprovando o que foi feito por aquelas estradas, mas sim que é preciso preservar. Por que não aproveitamos essa preservação pra enfatizar a história negra que correu por ali? Gritar bem alto “ei, fã dos bandeirantes, cê tá sabendo o que rolava por essas bandas?”.
Isso dá muito pano pra manga…
A quem interessar o texto Rememoração/Comemoração, da Helenice Rodrigues da Silva, tá pra download gratuito nas internets; 🙂
Mariana Cardoso, obrigada pela leitura e pelas recomendações e contribuições. Obrigada pelas correções historiográficas e de conceito, elas vão de encontro a uma crítica feita por uma amiga sobre a questão da memória e que como ela tem de ser preservado para que não se dilua ou se apague. Obrigada pela indicação de leitura. 🙂
Essas, realmente, são as que eu queria vê-las no Brasil, negros talentosos, assumidos e encorajados em defesa da própria raça orgulhosamente.
Obrigada José. Passamos por muitas coisas pra continuar erguidos repassando os ensinamentos ancestrais. Infelizmente o racismo, sexismo e machismo nos silenciam e até recuperar nossas vozes, temos um trabalho árduo. Espero que mais mulheres sejam estimuladas a conhecer suas raízes e materializar as indignações em escrita. Saudações, axé!
iruuuuuuu valeu por falar por muitos de nós sou quilombola,Próximo a Belo vale Mg cria de um quilombo, o rio que passava aqui já não passa mais a mineradora , secou ele todo! .
Oi Anderson,
Tive o grande prazer de conhecer o quilombo da chacrinha dos pretos e da boa morte. Tenho um imenso amor por sua terra e me sinto muito emocionada e honrada em ter minha fala alcançada por você. Sou moradora de favela e tenho muito orgulho pela luta dos quilombolas. As mineradoras em Minas Gerais fazem o que querem, com a licença dos governantes, mas os quilombolas resistem e, com certeza, vocês me estimulam a prosseguir. Salve a luta quilombola. Axé!
Parabéns!!! O seu texto é claro e direto!!! Como bem disse: Minas teve a maior população negra do país… Tem um vácuo na nossa historiografia que diz respeito a essa população que precisa ser contada. A senzala (negros, pobres, indígenas, periferia,etc) tem que desconstruir muitos mitos da casa grande! Você tem muita autoridade pra isso!!!
Obrigada Conceição. Ainda engatinho nos conhecimentos sobre Minas Gerais, estado que me dá tanta alegria e tristeza, talvez por esse vácuo, por questões não respondidas, pelo furto de identidade. Fico feliz que pessoas como você me deem legitimidade. Prometo aprimorar. Axé
Legal,
Quando estou no meio acadêmico representando a universidade com algum projeto de pesquisa, sempre me perguntam se sou aluno mesmo, alguns me perguntam se eu sou o pesquisado. com exceção os congressos de estudantes e os encontros que pautam a negritude, sempre tem aquele constrangimento ao responder.
Mas penso,
Não é quem pergunta que deveria se sentir constrangido?
Valeu pelo texto.
Poxa Franz, você é sempre complexo né? rs. Então, sim. É a pessoa que deveria se constranger não é? Por todo um imaginário colocado sobre nós. Nunca podemos escrever, não podemos pensar, nem construir nada. Sempre pra manter-nos na condição de não humano. Fico feliz em saber que isso tem mudado, que ao ver pessoas como você e a Silvia, retomo toda minha positividade. Obrigada pela força e companhia. Obrigada pela amizade e pelos exemplos. Axé nego!