O dia 1 de dezembro é um dia expressivo no Calendário de luta pelo direito à saúde, nele comemora-se o Dia Mundial da Luta Contra AIDS. Estrategicamente o dia é usado para divulgar agendas para desenvolver e reforçar o esforço mundial da luta contra a doença. O dia evoca as atividades já em curso e encoraja novas iniciativas para promover o controle da doença e ações que visem a qualidade de vida dos portadores da mesma.
Mas porque estamos falando do dia Mundial da Luta contra a AIDS no Blogueiras negras? Onde entra a raça nisso tudo?
De acordo com o Boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, o Brasil registrou, de 1980 até junho de 2017, 306.444 (34,7%) casos de aids em mulheres. Atualmente, a doença cresce progressivamente entre aquelas que têm 15 e 19 anos de idade, mas apresenta queda entre as de 20 a 59 anos, para voltar a crescer entre as com mais de 60 anos. As negras representam 59,6% dos casos de mulheres com HIV no Brasil.
Percebam, estamos falando de um percentual expressivo de mulheres negras vivendo com HIV e AIDS no Brasil, isso sem contar as subnotificações. Uma vez que somente a partir do ano de 2011 a variável “raça” foi inserida nos instrumentos de notificação obrigatória no país. Logo, podemos inferir que esses números do Ministério da Saúde podem ser ainda mais expressivos.
É fundamental dizer, que não há nenhuma relação entre a raça e o risco biológico de infecção pelo HIV, não há estudos que apontem que a população negra seja mais suscetível biologicamente. No entanto, diversos estudos no âmbito da saúde asseguram que essa vulnerabilidade se relaciona diretamente com as condições sócio econômicas e com o racismo.
Ser negro no Brasil é estar submetido a condições desfavoráveis de vida e de morte sem que isso cause comoção popular. Ser mulher e negra é um agravante ainda maior. Uma vez que a mulher negra está inserida na base da pirâmide social e isso a coloca em uma complexa situação de vulnerabilidade. Haja vista que grande parte do segmento de mulheres negras, não possuem acesso a bens, serviços, salários dignos, fatores que consubstanciados diminuem a vulnerabilidade em saúde.
As relações de desigualdade se reproduzem de maneira categórica, quando consideramos a questão racial que, aliada às questões de gênero, tem um efeito devastador na saúde das mulheres negras.
Apesar do avanço dos movimentos feministas nas últimas décadas, as mulheres ainda se encontram em ampla desvantagem, no que diz respeito aos direitos sexuais e reprodutivos. Uma vez que, o papel da mulher ainda é de ampla submissão com relação às questões sexuais e reprodutivas. Além disso, parece existir uma ampla dificuldade no diálogo com seus parceiros e parceiras a fim de promover uma sexualidade sem riscos, aumentando sua vulnerabilidade.
Minha percepção enquanto enfermeira da Saúde da Família é que ainda temos muito a avançar quando falamos do enfrentamento ao HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis. Somos todo tempo atravessados pela compreensão das normas de gênero socialmente construídas e como elas influenciam e determinam as relações entre homens e mulheres. Na prática clínica, atendo mulheres que relatam ampla dificuldade em negociar o uso do preservativo em relações estáveis. Isso porque essa negociação do uso do preservativo esbarra em questões delicadas, sobre as quais é difícil dialogar, ainda mais quando se estabelece uma relação de afeto e/ou de poder entre os indivíduos. Além disso, parece que propor ao parceiro o uso do preservativo coloca essa mulher sob suspeita de infidelidade. Para as mulheres jovens com relações eventuais a dificuldade parece não ser menor, tendo em vista que no geral essas mulheres não foram socializadas para falar de sua sexualidade e a priorizar sua segurança. A relação de poder entre os gêneros e o papel social que se espera da mulher constituem fatores de risco que levam a um quadro de vulnerabilidade extrema dessas mulheres, independente da faixa etária.
Um estudo de Taquette (2011) sobre a vulnerabilidade de meninas adolescentes em uma comunidade pobre no Rio de Janeiro, cita uma proporção muito maior de histórico de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) entre as mulheres negras. É sabido também que o menor acesso a serviços e a tratamentos eficazes podem favorecer a cronificações dessas ISTs aumentando o risco de contrair HIV. [ 1 ]
Outro fator de risco para ISTs e HIV é a violência contra a mulher. Entendendo que estamos falando aqui, das diversas categorias de violência de gênero e que em nosso país, infelizmente, são majoritariamente cometidas no âmbito familiar. Quando fazemos um recorte de raça outra vez as disparidades raciais aparecem. Uma vez que o dossiê da mulher negra lançado pela SEPPIR em 2013, já nos mostrou que essa parcela da população segue liderando esse “ranking” negativo das disparidades sociais e de gênero no País.
Outro ponto que tem relação direta com a vulnerabilidade em saúde dessas mulheres, é o racismo Institucional. Para os panteras Negras, Stokely Carmichael e Charles Hamilton em 1967, o racismo institucional é uma “falha coletiva de uma organização em prover um serviço apropriado e profissional às pessoas por causa de sua cor, cultura ou origem étnica” [ 2]. Ao passo que estamos falando de fluxos e processo dentro da saúde, também estamos falando do posicionamento do profissional que presta a assistência.
O racismo é uma forma de racionalidade, uma forma de compreensão das relações e ele vai constituir as ações conscientes mas também as ações inconscientes de um indivíduo. Como esse racismo se materializa na saúde e qual o impacto que isso tem na vida de mulheres negras?
Diversos estudos no âmbito da saúde já apontam que mulheres negras são as mais negligenciadas dentro das unidades de saúde, são menos tocadas por profissionais, são solicitados menos exames, sofrem mais violência obstétrica, recebem menos analgesia e uma série de iniquidades em saúde que se começarmos a listar daria um segundo texto. A visão racista e colonialista que criou o mito da mulher preta forte, que aguenta mais dor, continua nos matando.
Outro ponto que abarca essa iniquidade em saúde, é a objetificação dos corpos pretos. Ao ser colocada no lugar daquela que “vive para fazer sexo e faz sexo para viver”, ela também tem a sua saúde sexual negligenciada. Não é incomum, ouvir colegas da saúde, das mais diversas categorias, mencionando as jovens usuárias de saúde negras e periféricas, como naturalmente fogosas e consequentemente negligenciando a promoção em saúde para uma vida sexual protegida e sem riscos.
Há alguns anos tenho discutido tanto na academia quanto na assistência, sobre o poder nefasto do racismo institucional e como o mesmo constitui o grande fator de risco para a saúde da população negra. Apoiada em Taquette (2011) afirmo que o uso das desigualdades econômicas, como única hipótese explicativa das iniquidades raciais, joga uma cortina de fumaça sobre a exclusão e a intolerância a que a população negra é submetida nos mais diversos setores da sociedade, incluindo os equipamentos de saúde.
A violência racial e de gênero representam obstáculos contundentes para a equidade em saúde no Brasil. É urgente repensar as práticas do saber/fazer saúde de forma inclusiva, humanizada e antirracista. É urgente incluir efetivamente as mulheres negras, também, como população prioritária nas políticas públicas de saúde para DSTs/ AIDS.
[1]TAQUETTE, S. R. Vulnerabilidade às DST/AIDS de adolescentes femininas afrodescendentes moradoras de comunidades pobres do município do Rio de Janeiro. In: CAMPOS, A. C. M.; ALMEIDA,C. R. A.; AOKI, F. H. (Org.). Saúde da população negra, HIV/AIDS: pesquisas e práticas. Campinas: Arte Escrita, 2011. p. 43-54.
[2] Carmichael, S. e Hamilton, C. Black power: the politics of liberation in America. New York, Vintage, 1967, p. 4
https://www.scielosp.org/arrixem/sausoc/2016.v25n3/602-618/
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