Por Viviana Santiago para as Blogueiras Negras
Segundo a física, a resiliência é uma certa particularidade apresentada por alguns corpos, de após sofrerem uma deformação, voltar a sua forma original; em linguagem figurada seria aquela habilidade de fazer do limão, uma limonada e quem trabalha no terceiro setor, sobretudo com os chamados grupos em situação de vulnerabilidade e risco social/e ou pessoal sabe que essa palavra faz parte do repertório de ensinamentos.
Falar de resiliência significa evocar aquela capacidade que nós todas, pessoas em alguma situação de vulnerabilidade, devemos possuir, ou ser apoiadas na construção: uma capacidade que nos possibilitaria transformar cada situação ruim vivida, numa situação positiva, a partir de nossa competência de re-significar e seguir em frente.
Há alguns meses, eu, Viviana, negra-mulher-nordestina-pedagoga e mãe fui a Áustria participar de uma reunião de trabalho: atuo com defesa de direitos de crianças e adolescentes, assim como de mulheres e famílias em situação de vulnerabilidade, dentro outros aspectos, defendo a idéia de promoção, proteção defesa e garantia do direito a convivência familiar e comunitária para todos esses grupos; e nesse contexto fui convidada a ser stakeholder para um processo de elaboração de uma política global.
Meu vôo para Áustria deveria fazer antes uma escala em Frankfurt, vocês já imaginam a cena: avião lotado de brasileiras e brasileiros, mulheres e homens desembarcando naquela correria, muitos passageiros habitué, outras pessoas de primeira viagem chegando à Europa, e eu: com aquela sensação de, ainda sob o impacto de tantas vozes, tantas línguas, tantos rostos diferentes, sentir-me num espaço global – o aeroporto de Frankfurt é gigantesco- vendo todo mundo e pensando curiosamente como estaria sendo vista; (Não tardaria a descobrir…)
Na fila da imigração, haviam dezenas e dezenas de brasileiras e brasileiros, também muitas mulheres e homens também de outros lugares do mundo, muitos e muitos orientais, mas; por uma daquelas coincidências do destino: a única mulher negra ali, era eu.
Chegando minha vez de apresentar o passaporte, um jovem me atendeu e extremamente rude, me pergunta num inglês -muito mal falado- para onde vou e o que vou fazer. Explico que vou prestar uma consultoria sobre gênero, para uma ONG internacional – muito conhecida na Europa-, ele me faz uma pergunta que não consigo entender e peço que ele repita. E ai começa o show de humilhações, grosseria e maus tratos: mostro todos os papéis, os convites, meu currículo e ele, sempre me olhando de cima a baixo, com especial atenção para meu cabelo, minha boca e minha bunda; ele rejeita tudo que eu falo, fazendo de conta que não entende, e em alemão, partilhando com o companheiro do guichê ao lado, comentários jocosos ao meu respeito.
Somos todas mulheres!, escuto vozes em minha cabeça, daquelas pessoas que querem destituir as nossas lutas, e diminuir a importância da abordagem das interseccionalidades com a afirmação de que somos todas iguais… mas quando olho para o lado, vejo as outras mulheres caminhando livremente apresentando seus passaportes e seguindo em frente, enquanto somente eu: a negra, estou retida; Somos todas mulheres!, escuto mais uma vez, mas percebo que somente eu, mulher-negra, em meio a todas aquelas mulheres, estou tendo que justificar exaustivamente o que faz uma mulher negra indo para Áustria? Somos todas mulheres: mas só sobre mim recaia o estereótipo da mulata e da prostituta….
E eu fico pensando nessa experiência…
Pensando, entristeço e recordo que partilhei com as amigas e amigos e ouvindo de todas: puxa, que pesado! Vixi que perverso! mas em seguida, sempre a continuação: ainda bem que você é uma mulher resiliente! Seja resiliente, faça dessa situação uma limonada, aprenda com isso! E continuam, quando eu digo que em mais alguns meses estarei lá novamente: Isso Vivi, seja resiliente! Você tem que aprender a lidar com isso!
Sem desmerecer nenhum pouco, a importância de darmos a volta por cima, venho sinceramente, dizer que eu não quero Ter que Ser Resiliente! Eu não quero Ter que fazer uma Limonada! Eu quero é Ser feliz! Porque felicidade e ser tratada dignamente é um direito.
Aceitar que devo ser resiliente, nesse e em muitos contextos, é aceitar como natural que essa e outras violência vão acontecer e vãos e repetir, é aceitar que elas estão Determinadas Dadas e irrevogáveis.
Penso na minha experiência de ser menina, jovem, mulher e mãe negra…Não é isso que escutamos quando naturalizam que nós aguentamos dor por isso não recebemos anestesia? Seja forte! Você consegue! Quando naturalizam que nós somos fortes por isso trabalhamos sempre a mais? que nossa pele não queima, por isso ninguém nunca passa protetor solar ou dá um bonezinho para as crianças negras da educação infantil quando vão ao parquinhos?… Somos fortes, e se algo de ruim acontecer Seremos resilientes!!
Não quero mais ouvir as pessoas me mandando ser resilientes, quero sim, saber, quando as pessoas vão me dizer,(a mim e a todas as outras mulheres negras): Vocês têm o direito a serem tratadas dignamente, espero que isso não aconteça mais!
Muitas vezes quando escuto o discurso do “be posisitve!” consigo perceber uma ausência de problematização: Porque ao mesmo tempo que dizemos que as pessoas devem ser capazes de se recuperar de violências, também não defendemos o direito das mesmas a uma vida sem violência?
Sejamos resilientes, mas antes de tudo Não sejamos mais violentadas! Não sejamos mais tratadas como objetivos! Não admitamos nem nos conformemos com essas violências que se repetem! Mudemos esse repertório!
É isso que estou pensando agora.
E é isso que levarei comigo, quando for mais uma vez Mulher negra no aeroporto em Frankfurt.