Por Sara Joker para as Blogueiras Negras
Nesse post falarei do que eu considero o ponto forte da identidade da militante negra, o cabelo. Assumir o cabelo natural é um ato de militância. Já falei anteriormente sobre como sofremos violência de amigxs, companheirxs, familiares, da sociedade em geral quando não seguimos a ditadura do cabelo liso. Sofri muito preconceito por causa do meu cabelo na infância, adolescência e na idade adulta, foi graças ao bom senso da minha mãe que tanto o meu cabelo e o de minha irmã não foram alisados tão cedo, na infância.
E por acaso, minha mãe, essa mulher de bom senso, era branca. Sim, a não aceitação do nosso cabelo não vinha da parte branca da família, vinha justo de nossxs iguais. Sim, temos nossa identidade tão apagada com esses séculos de humilhação e racismo que são xs próprixs negrxs que não aceitam seu cabelo natural, aprendemos que nossa cor, nosso cabelo, nossos traços são feios, devemos alisar o cabelo, fazer cirurgias para ficarmos com traços mais brancos. Muitas negras fazem isso, usando a desculpa de economia, praticidade, algumas dizendo que é pra fugir do preconceito (“quem é você para me julgar? Você tem cabelo de branca, nunca sofreu com racismo”), alisam seus cabelos. Hoje não quero falar apenas subjetivamente do alisamento, farei uma explicação mais palpável de como a praticidade e a economia são desculpas para um preconceito enfiado goela a baixo em nós, negras, desde muito antes das químicas “milagrosas” e aparelhos elétricos para “embranquecer” nossos cabelos.
Desenhei uma história em quadrinho que falava justamente de como a negra sofre com a ditadura de ser branca desde o fim da escravidão, a busca para parecer branca leva essa a alisar cabelo com pente quente. E a reação, fingir ser branca não funcionava, foi quando essa negra assumiu seu black e teve voz que finalmente conseguiu um emprego. Essa ficção com base na história pós abolição aqui na cidade de Juiz de Fora eu uso aqui como uma metáfora sobre assumir-se. Desenhei esse quadrinho na época em que minha irmã aceitou seu cabelo, então baseei a protagonista nela, como uma forma de falar de meu orgulho por ela.
Falei da minha irmã pois sei de algumas desculpas usadas para se alisar o cabelo e, desejo com a história da minha irmã desfazer de forma lógica essas desculpas. A primeira e mais fácil de destruir é a de que o black combina com alguns estilos, alternativas, hippies, dependendo de como a mulher se veste não fica bem. Pelo perfil da minha irmã, advogada impecável, que vive vestida para ir a fórum, escritório e audiências, o senso comum a imaginaria de cabelo alisado. Seu black combina com qualquer roupa que coloca.
Minha irmã usou todas químicas “inovadoras” até o ano de 2009, foi uma adolescente de cabelo liso, diferente de mim que nasci com o cabelo cacheado, o cabelo da Lia é crespo. E quem vê fotos de seu cabelo alisado sabe o quanto ela ficou mais bonita de cabelo black, mas isso não preciso falar, a foto de antes e depois prova isso. O legal aqui é que a Lia me falou dos gastos de manter o cabelo liso e da falta de praticidade também. Minha irmã assumiu o black sem o BC, não entro no detalhe do BC pois é uma discussão muito longa sobre aceitação do feminino, como ver a identidade da mulher sem cabelos compridos.
Lia fez texturização nos cabelos até poder retirar todo o pedaço com química do cabelo e, pelo que ela fala e eu notei, o momento mais trabalhoso na transição foi menos trabalhoso que esticar cabelo a cada lavagem, manter o cabelo sem lavar, todo o desespero de mulheres alisadas. Dormir de touca para não marcar o cabelo, ir a piscinas e não entrar na água, nada disso a pertencia mais. Hoje em dia, com cabelo 100% natural, minha irmã aderiu ao pente garfo e nem se estressa em acordar super cedo nos dias de lavar o cabelo. Praticidade de cabelo alisado eu nunca conheci.
Sobre os gastos, minha irmã alisava o cabelo no salão, mas em salão ou em casa, a química é muito cara e vem com todo um preparo de baterias de hidratações para manter o cabelo menos quebradiço e frágil possível, o que nunca era realmente um cabelo saudável. Cabelo de química forte suga o hidratante e vive opaco e poroso, então era muito creme e pouco resultado. Outras meninas que já usaram química reclamam de cabelo opaco, não é só a Lia que fala na diferença de antigamente para hoje. E, além do gasto com química, cabeleireiro, hidratação excessiva, ainda tinha a conta de luz, muito mais alta, pelo uso excessivo de secador e prancha (chapinha ou piastra) para alisar em casa e economizar um pouco com salão de beleza.
Assumir o black virou uma onda aqui em Juiz de Fora nesses últimos anos, não acredito que seja passageiro, acho que mulheres e homens estão finalmente tomando coragem de bater de frente com o status quo mesmo! Sei que muita gente já me falou que não sei o que é sofrer com racismo, mas já sofri, com cabelos de cachos ou de dreads, já fui vista como “suspeita” por ter traços negros que tanto me orgulho, já fui objetificada por esses mesmos traços. E tanto eu quanto a Lia, já sofremos preconceito de mulheres negras, que ainda mantém sua própria humilhação e humilhação de outras por terem aprendido os clichês do pensamento racista de que “cabelo alisado é mais prático” ou “é coisa de marginal” ou, às vezes, não nos atinge mas ainda se atinge ao falar “não combina comigo/meu rosto/meu estilo o black”. Aprendemos que isso é a verdade única e reproduzimos.
Nesse último mês, a Lia ficou em segundo lugar num concurso de modelos black no facebook, é preciso mostrar orgulho, afirmar o quanto ela é corajosa e militante, deixando o pensamento senso comum e se assumindo negra.
Sara Joker é feminista, artista, quadrinista, bissexual, mulher, negra de coração e cantora nas horas vagas.
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