Seu cabelo black combina com qualquer roupa

Falei da minha irmã pois sei de algumas desculpas usadas para se alisar o cabelo e, desejo com a história da minha irmã desfazer de forma lógica essas desculpas. A primeira e mais fácil de destruir é a de que o black combina com alguns estilos, alternativas, hippies, dependendo de como a mulher se veste não fica bem. Pelo perfil da minha irmã, advogada impecável, que vive vestida para ir a fórum, escritório e audiências, o senso comum a imaginaria de cabelo alisado. Seu black combina com qualquer roupa que coloca.

Por Sara Joker para as Blogueiras Negras

Nesse post falarei do que eu considero o ponto forte da identidade da militante negra, o cabelo. Assumir o cabelo natural é um ato de militância. Já falei anteriormente sobre como sofremos violência de amigxs, companheirxs, familiares, da sociedade em geral quando não seguimos a ditadura do cabelo liso. Sofri muito preconceito por causa do meu cabelo na infância, adolescência e na idade adulta, foi graças ao bom senso da minha mãe que tanto o meu cabelo e o de minha irmã não foram alisados tão cedo, na infância.

Eu de dreads de linha em 2010
Eu de dreads de linha em 2010

E por acaso, minha mãe, essa mulher de bom senso, era branca. Sim, a não aceitação do nosso cabelo não vinha da parte branca da família, vinha justo de nossxs iguais. Sim, temos nossa identidade tão apagada com esses séculos de humilhação e racismo que são xs próprixs negrxs que não aceitam seu cabelo natural, aprendemos que nossa cor, nosso cabelo, nossos traços são feios, devemos alisar o cabelo, fazer cirurgias para ficarmos com traços mais brancos. Muitas negras fazem isso, usando a desculpa de economia, praticidade, algumas dizendo que é pra fugir do preconceito (“quem é você para me julgar? Você tem cabelo de branca, nunca sofreu com racismo”), alisam seus cabelos. Hoje não quero falar apenas subjetivamente do alisamento, farei uma explicação mais palpável de como a praticidade e a economia são desculpas para um preconceito enfiado goela a baixo em nós, negras, desde muito antes das químicas “milagrosas” e aparelhos elétricos para “embranquecer” nossos cabelos.

Desenhei uma história em quadrinho que falava justamente de como a negra sofre com a ditadura de ser branca desde o fim da escravidão, a busca para parecer branca leva essa a alisar cabelo com pente quente. E a reação, fingir ser branca não funcionava, foi quando essa negra assumiu seu black e teve voz que finalmente conseguiu um emprego. Essa ficção com base na história pós abolição aqui na cidade de Juiz de Fora eu uso aqui como uma metáfora sobre assumir-se. Desenhei esse quadrinho na época em que minha irmã aceitou seu cabelo, então baseei a protagonista nela, como uma forma de falar de meu orgulho por ela.

Lia em momento de transição, com texturização nos cabelos.
Lia em momento de transição, com texturização nos cabelos.

Falei da minha irmã pois sei de algumas desculpas usadas para se alisar o cabelo e, desejo com a história da minha irmã desfazer de forma lógica essas desculpas. A primeira e mais fácil de destruir é a de que o black combina com alguns estilos, alternativas, hippies, dependendo de como a mulher se veste não fica bem. Pelo perfil da minha irmã, advogada impecável, que vive vestida para ir a fórum, escritório e audiências, o senso comum a imaginaria de cabelo alisado. Seu black combina com qualquer roupa que coloca.

Minha irmã usou todas químicas “inovadoras” até o ano de 2009, foi uma adolescente de cabelo liso, diferente de mim que nasci com o cabelo cacheado, o cabelo da Lia é crespo. E quem vê fotos de seu cabelo alisado sabe o quanto ela ficou mais bonita de cabelo black, mas isso não preciso falar, a foto de antes e depois prova isso. O legal aqui é que a Lia me falou dos gastos de manter o cabelo liso e da falta de praticidade também. Minha irmã assumiu o black sem o BC, não entro no detalhe do BC pois é uma discussão muito longa sobre aceitação do feminino, como ver a identidade da mulher sem cabelos compridos.

Lia fez texturização nos cabelos até poder retirar todo o pedaço com química do cabelo e, pelo que ela fala e eu notei, o momento mais trabalhoso na transição foi menos trabalhoso que esticar cabelo a cada lavagem, manter o cabelo sem lavar, todo o desespero de mulheres alisadas. Dormir de touca para não marcar o cabelo, ir a piscinas e não entrar na água, nada disso a pertencia mais. Hoje em dia, com cabelo 100% natural, minha irmã aderiu ao pente garfo e nem se estressa em acordar super cedo nos dias de lavar o cabelo. Praticidade de cabelo alisado eu nunca conheci.

Sobre os gastos, minha irmã alisava o cabelo no salão, mas em salão ou em casa, a química é muito cara e vem com todo um preparo de baterias de hidratações para manter o cabelo menos quebradiço e frágil possível, o que nunca era realmente um cabelo saudável. Cabelo de química forte suga o hidratante e vive opaco e poroso, então era muito creme e pouco resultado. Outras meninas que já usaram química reclamam de cabelo opaco, não é só a Lia que fala na diferença de antigamente para hoje. E, além do gasto com química, cabeleireiro, hidratação excessiva, ainda tinha a conta de luz, muito mais alta, pelo uso excessivo de secador e prancha (chapinha ou piastra) para alisar em casa e economizar um pouco com salão de beleza.

Assumir o black virou uma onda aqui em Juiz de Fora nesses últimos anos, não acredito que seja passageiro, acho que mulheres e homens estão finalmente tomando coragem de bater de frente com o status quo mesmo! Sei que muita gente já me falou que não sei o que é sofrer com racismo, mas já sofri, com cabelos de cachos ou de dreads, já fui vista como “suspeita” por ter traços negros que tanto me orgulho, já fui objetificada por esses mesmos traços. E tanto eu quanto a Lia, já sofremos preconceito de mulheres negras, que ainda mantém sua própria humilhação e humilhação de outras por terem aprendido os clichês do pensamento racista de que “cabelo alisado é mais prático” ou “é coisa de marginal” ou, às vezes, não nos atinge mas ainda se atinge ao falar “não combina comigo/meu rosto/meu estilo o black”. Aprendemos que isso é a verdade única e reproduzimos.

Nesse último mês, a Lia ficou em segundo lugar num concurso de modelos black no facebook, é preciso mostrar orgulho, afirmar o quanto ela é corajosa e militante, deixando o pensamento senso comum e se assumindo negra.

Lia de cabelo black, fotografia com a qual competiu e ficou em segundo lugar no concurso modelo black.
Lia de cabelo natural, fotografia com a qual competiu e ficou em segundo lugar no concurso modelo black.

Sara Joker é feminista, artista, quadrinista, bissexual, mulher, negra de coração e cantora nas horas vagas.


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22 comments
  1. Acho que cabelo liso pra negra não é imposição da mídia não, tem mulher que gosta,acha mais prático, e tem aquelas que ficam mais bonitas mesmo, não e meu caso,fico melhor de cabelo crespo, mas não podemos impor isso a todo mundo,cada um do jeito que achar melhor, se sentir bem….sem ditadura de crespo tbm

  2. E eu meninas, que sou negra e tenho o cabelo liso por parte da minha mãe que é branca. Sofro preconceito duplo mas sinceramente não me afeta sou feliz com minha pele negra e meus cabelos lisos.
    Eu me amo e me aceito do jeito que eu sou talvez por isso não de importância para os olhares racistas e comentários preconceituosos das pessoas brancas e negras que preferem me chamar de Índia a me reconhecer como igual.

  3. Texto interessante. E, desse mal todas as mulheres passam. Além do racismo, alisar os cabelos tá ligado a um padrão de beleza imposto a todas as mulheres, independente de etinia. É triste e tem a ver com o que vc falou sobre identidade feminina. Eu sou branca, tenho 26 anos e até os 25 tinha o cabelo enorme e vivia a ditadura do loiro. Fui criada com base na ideia de que bonita é a mulher loira e de cabelão, de que isso era feminino. Belo dia eu cansei e cortei meu cabelo que batia na cintura num chanel. Foi empoderador e libertador. As pessoas ficaram surpresas porque eu era daquelas que chorava pra tirar as pontinhas. Continuei cortando, fazendo cortes esvoaçantes, voltando pro chanel, até que depois de um corte me deparei com a cor natural do meu cabelo: um castanho escuro que eu não via desde os 13 anos de idade. Foi mágico. Todos me perguntavam se eu tinha pintado e eu orgulhosamente falava ”esse é meu cabelo natural”. Sinceramente, nunca me senti tão bonita e confiante como agora, e me libertei da ditadura do loiro-longo, que é cruel como a do liso.

  4. Oi gente, já tem quase 2 anos de decidir deixar meus cabelos crespos,más sinceramente ainda não achei o produto certo, tô quase desistindo, e alem do mais tenho tido muitos gastos.Para mim tá custoso. Tenho muito cabelo e são crespíssimos mesmo. Tem dias que acordo louca, cemeçei mesmo a ter dores nos braços de desembaraçar os meus cabelos.. Estou quase desistindo, são muitos produtos,mtos conselhos ás ainda não achei o que me convem. Alguem me ajuda!!!

    1. Se você esta com problema pra desembaraçar é provavelmente porque tá economizando no creme =P Você precisa pentear ainda no banho… se no dia vc não quer lavar os cabelos… Eu só molho (comprei um potinho de plastico que esguicha água) e passo creme e passo os dedos pra desembaraçar… não precisa querer passar pente fino nos cabelos…

  5. Também não podemos aderir à “ditadura do crespo”! A mulher negra é muito mais do que um cabelo afro. E eu vejo que a maioria das negras que defende o cabelo natural são as de pele mais clara e com cabelos de cachos mais soltos. Na verdade toda mulher quer um cabelo comprido e nem sempre esse objetivo é atingido pelas mulheres com cabelos mais crespos, daí a opção em tratamentos químicos.

    1. Marilda, acho que também não podemos generalizar.. A mulher negra é muito mais do que um cabelo crespo, afro, realmente concordo com você. Mas a identificação com o ser negra, muitas vezes começa pelo cabelo, também sem poder generalizar. Conheço várias mulheres de cabelos bem mais crespos do que o meu que gostam deles tanto quanto eu gosto dos meus, que tenho uma pele mais clara (pra alguns) mas meu cabelo é bem crespinho, lindo. A opção em tratamentos químicos é por pura imposição da mídia, desde sempre. Mas são opções e cada vez mais vejo mulheres negras com seus cabelos crespos e belos por aí.

  6. Meu cabelo não é totalmente crespo, crespo na frente, ondulado no resto, formando uma juba gigante, uma mistura doida de uma mãe branca com um pai negro/indígena. Tenho 26 anos e fazia relaxamento desde os 10 anos (!!!). Passei pela escova progressiva, alisamentos mil… Minha adolescência foi a eterna e sofrível história de uma luta contra meu cabelo. E ano passado finalmente eu disse “chega!”, é muito dinheiro e tempo gasto pra… pra quê mesmo?! Eu já nem me lembro mais! Se desdobrar em quatro para “domar” o cabelo, é mais um aspecto da nossa sociedade que quer controlar os corpos das mulheres de todas as maneiras. Como uma feminista de longa data, finalmente eu resolvi assumir a minha juba (a qual não me incomodava em nada quando eu era criança, btw). Ainda estou na fase de transição e como meu cabelo é bem comprido, ele tá metade-metade e faço um pouco de escova de leve pra a diferença não ser tanta. Mas graças a textos como esse, eu fico cada dia mais feliz em ver meu cabelo “renascer das cinzas” e não me arrependo nem um pouco de ter parado com a química maldita dos alisamentos. Valeu mesmo pelo texto e parabéns aos lindos cachos de Lia!

  7. Na boa, vou dxar meu cabelo voltar ao normal. depois desses textos de vocês percebi que eu posso me aceitar com meu cabelo crespo. tenho 15 anos e meu cabelo jah quebrou no terceiro relaxamento que eu fiz, agr estou recuperando ele. espero usar ele natural assim como vocês!! bjos

  8. Ainda vou assumir um black. Já cortei os cabelos – que estavam na cintura – na altura dos ombros. Agora, quero tomar coragem pra mandar o resto da química embora e me assumir de vez. Espero que consiga!

  9. Ficou muuuuuito mais bonita do que já era. Amei. Fico olhando dentro dos onibus e contando quantos blacks teríamos se o pessoal não alizasse: faça o teste: maioria Black Power. Vai ser lindo!

  10. Amei, ainda mais porque eu estou vivendo isso. Há pouco mais de 5 meses fiz o BC e assumi, finalmente, quem eu sou. Hoje definitivamente tenho orgulho de ser quem sou, e mostro isso com muito glamour :3

  11. Maravilhoso seu texto! Somente há uns 4 anos percebi o quanto é lindo assumir nosso cabelo como ele é, crespo e não “ruim”. Infelizmente ainda há muitas negras que ainda têm internalizado esse sentimento de que “cabelo liso é que realmente é bonito, cabelo crespo é horrível”… Ainda há um longo caminho, eu demorei 32 anos pra mudar(tenho 36 hoje).

  12. Também moro em Juiz de Fora,e tenho percebido mesmo essa mudança,principalmente entre os mais jovens.Legal ver que essa geração será mais livre,leve e solta do que a minha foi,sempre fui escravizada pelo alisamento dos meus crespinhos naturais,primeiro com pente quente,depois por diversos tipos de químicas,agora ainda uso relaxamento na raiz,mas acho que o futuro será a aceitação das minhas ”molinhas”naturais,rsrsrs.Só o tempo dirá.

  13. Adorei o texto e assim como sua irmã, sou advogada, e estou no caminho da transição. É a pura verdade… já tive que ouvir em salões não especializados, que uma advogada que se preze deve “cuidar” de seus cabelos, ou seja, mantê-los escovados, pranchados, etc, etc, e tal… Isto é, seguir o modelo eurocentrista… Cansei! Só vou ser profissionalmente completa e segura se puder ser o que sou!!! Valeu pela MOTIVAÇÃO!!!

  14. Difícil é algumas mulheres entenderem esse conceito,vão até argumentar sobre seu texto Sara,que é questão de “livre escolha”….mas sabemos que há uma ditadura,que impõe padrões estéticos,de aceitação,para que todos te vejam como “bem cuidada”,cabelos lisos.Se você ousa usar um cabelo naturalmente afro(dread look,black,tranças,etc),sofre toda sorte de piadas(cotonete de orelhão,cabelo de “defunto”, cabelo de Emília(personagem Monteiro Lobato),caminho de rato,etc….Infelizmente,a ausência de identidade é mãe da ignorância e tem como filha o preconceito.Belíssimo texto e como vamos lutar por essa identidade,essa beleza e valorização da autoestima do negro(a).

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