Pois é senhores, eu quero falar pra vocês enquanto jovem, enquanto negro, lá da Terra Firme, que desde segunda-feira mal consegue cochilar, sendo limitado a toques de recolher, tenho que voltar cedo pra minha casa porque se eu tiver tarde na rua, vamo falar bem na sinceridade, eu posso ser morto. Vou contar pros senhores, os senhores receberam dados que essa, essa … desculpa eu vou ter que perder o decoro porque a revolta é muito grande, que essa mídia passou pra vocês de que eram 11 mortos, isso foi só naquela noite lá na Terra Firme.
Se vocês forem levar em consideração Guamá, Jurunas, Canudos … temos pra mais de 35 mortos. Ainda vem o Secretário e dizer que está tudo sob controle, não tá! Não consigo falar sem me tremer diante da situação. Porque o que aconteceu foi, sim, uma operação oficial. Porque quando eu entrei na São Domingos, eu fui parado, baculejado, e olharam dentro da minha bolsa, reviraram o material e a primeira coisa que disseram foi “ah, você é direitos humanos, defende bandido”. Eu me vi morrer ali naquela hora.
Perguntaram “moleque onde tu moras? vai pra tua casa que daqui a pouco a gente vai tá fazendo a raspa”. Aí vi os caras encapuzados, enfileirados nas motos e por trás o aparelho repressor do Estado. Foram coniventes com o que aconteceu ali naquela noite. E a inda vem alguém me dizer que isso tá certo? Não tá! Corri pra minha casa e não tinha mais ninguém na rua. Os caras foram passando, velho, e matando quem tava na rua, como se fosse bicho! E não tem como a gente confiar que essa mídia daqui vai dar dados reais porque não vai dar. Não existe isso de que foi um confronto, não foi um confronto! Foi uma execução! A gente viu uma carnificina naquela noite.
(J.S.A, 25 anos, morador da TF)
Anualmente, o Brasil dedica um trimestre à realização de campanhas de prevenção ao câncer de mama, câncer de próstata e à Aids, o volume de famílias afetadas por essas doenças é enorme, é da ordem dos milhões. E uma centena de ações e mobilizações são feitas para buscar a diminuição dessas taxas. Entretanto, o racismo é uma enfermidade que assola o Brasil há séculos que também demanda medidas reais de combate, visando seu extermínio.
Passou-se quase um mês da chacina ocorrida em Belém na madrugada de 5 de novembro, na qual foram divulgadas 11 mortes. Naquela madrugada pouca gente dormiu nos bairros do Guamá, Jurunas, Sideral, Marco, Tapanã e, especialmente, na Terra Firme. Semelhanças entre os bairros? Periferia. População residente nos três locais: predominantemente negra. A chacina mirou quem? A juventude. Eis a consciência negra lavando ruas e calçadas com sangue. É essa a ação do Estado para combater a enfermidade.
A chacina não foi um ato isolado. É a cultura do genocídio, do extermínio da juventude negra e pobre, pela polícia militar, estampada nas páginas policiais como segurança pública. Basta dizer que existe no Brasil a PL 4471/12 que visa acabar com os autos de resistência, herança da ditadura militar que legitima que o Estado brasileiro mate quem, onde e como quiser. Sendo quem: a pessoa negra jovem. O onde: a periferia. E como: tiros à queima-roupa. De novo: extermínio. Genocídio.
Prevenção e combate? Só da periferia e do povo preto. Nesses últimos 30 dias foram realizadas algumas reuniões entre a comunidade, movimentos sociais e poder público, dois atos (um no centro de Belém e outro na Terra Firme) e no próximo dia 5, haverá Vigília pela vida na fronteira dos bairros da Terra Firme e do Guamá. Em todas as ocasiões o Governo Estadual e o Federal foram cobrados a dar respostas efetivas para a população. Entretanto, quais as ações do Governo do Estado nas investigações? Que punições sofreram as pessoas responsáveis pela morte do cabo da PM? Aliás, quem são estas pessoas? E quem são os “encapuzados” envolvidos?
Depois que mataram um policial militar no bairro do Guamá o método investigativo foi o genocídio. Convocações da ROTAM e de um sargento cobravam que a PM desse a resposta à comunidade, isto é, o genocídio. O relato no início desse texto mostra um pouco do cenário do que aconteceu em seguida: medo, terror, insegurança e genocídio. Em tempos de reinvindicação da consciência humana, é a consciência negra que continua sendo exterminada. E ao passo que temos cores suaves nas campanhas de prevenção rosa e azul, no que depender das ações de equidade racial do Estado, a cor negra continuará sendo o vermelho.
As informações oficiais nunca oficializam os depoimentos da comunidade e dado o controle repressivo, a comunidade não falará mesmo, também não divulgará a quantidade real de mortos, sabe a conta quem conferiu seus entes. No IML de Belém, além do policial assassinado, foram identificadas as seguintes pessoas:
Alex dos Santos Viana, 20 anos
Allesson Carvalho, 37 anos
Bruno de Souza Gemaque, 20 anos
Eduardo Galucio Chaves, 16 anos
Jean Oscar Ferro dos Santos, 33 anos
Jefferson Cabral Reis, 27 anos
Marcio dos Santos Rodrigues, 22 anos
Marcos Murilo Ferreira Barbosa, 20 anos
Nadson da Costa Araújo, idade não identificada
César Augusto Santos da Silva, idade não identificada
Faço questão de nomear cada uma dessas pessoas para que não sejam esquecidos ou sejam apenas estatísticas. Para que não sejam apenas corpos arrastados pelas milícias, como o corpo de Cláudia Ferreira foi arrastado pela polícia no Rio de Janeiro. Em coletiva, o governador paraense afirmou que “seria leviano dizer que PMs estão ou não envolvidos. Esta relação está sendo investigada”, curiosamente, naquela madrugada, mesmo depois da certeza das mortes o Estado não enviou ajuda às comunidades, esse mesmo coerente e sóbrio Estado, que anuncia informações oficiais com base em dados fornecidos pelo seu próprio sistema.
Queria ver coragem, coerência e consciência humana se esse mesmo Estado admitisse que não se importa com essa faxina étnica, com esse genocídio. Que reconhecesse que seu aparato ideológico funciona no sentido de oprimir e reprimir, de cercear a população negra e periférica, ameaça ambulante ao bem-estar eurocêntrico-brasileiro. Isso sim seria uma bela consciência humana!
Mas não, o que temos pra hoje é a panfletagem da perpetuação do genocídio. gente preta livre vai “denegrir” a imagem da sociedade brasileira, o “passado negro” da população da senzala pode falir com o perfeito sistema de funcionamento da casa grande.
Faz um mês que as famílias vitimadas pelo genocídio de 5 de novembro contam os ecos daquele terrorismo. Juventude negra morta pelos bairros da periferia. Sem direito à própria identidade. Jovens que não puderam contar as próprias histórias, que foram exterminados por uma única razão: serem pretas, jovens, pobres, andando livremente pelas ruas. E só para evitarmos uma crise: a PM não faz caçada em massa de jovens brancos de olhos azuis. Até porque sabemos que pobreza é associada a gente preta.
Imagem de destaque – arquivo pessoal