Estou me arriscando ao escrever este texto. Estou me arriscando a ser bastante criticada, ser atacada, silenciada e acusada de falta de sororidade, como vi acontecer com muitas das minhas companheiras de militância. Mas vou abusar um pouco do meu “privilégio” de ser desconhecida no meio feminista. Vou sair um pouco da minha zona de conforto e me atrever a falar. Por mais que “eu não seja ninguém na fila do pão”, acho que já cheguei num estado de urgência com minha própria consciência.
Sou feminista e, de todas as correntes, milito com base no feminismo interseccional. Para mim, como mulher negra, a interseccionalidade não é uma alternativa à minha militância, e sim a mais próxima e melhor maneira de exercer um feminismo que gosto de chamar de universal. Quando penso no conceito de universal, penso em algo que dialogue com todo tipo de indivíduo, respeitando suas particularidades e vivências. Diferentemente do conceito de inclusivo, que adapta o já posto às minorias, tratando-as, por vezes, como um bloco de características únicas.
É preciso entender que incluir não é algo ruim, é extremamente necessário quando se está em um ambiente que traz desvantagens aos grupos marginalizados. Mas entre escolher um feminismo que apenas me inclui dentro de um molde hegemônico e um feminismo que se propõe a abranger e priorizar a luta contra diferentes maneiras de opressão, eu fico com o segundo. Pensar em interseccionalidade é pensar que mesmo eu como mulher negra, por ser de pele mais clara, classe-média e universitária (mesmo que cotista), tenho privilégios sobre mulheres negras de pele escura, pobres e não alfabetizadas por exemplo.
Já digo de antemão que não ignoro as mulheres negras que militam com base em outras correntes, sobretudo a do feminismo radical. Apesar de ter sérias críticas à teoria radical e mais ainda à sua prática, minha sororidade serve a todas às mulheres que dela precisarem. Ouso dizer que uma das maneiras de se exercer a sororidade é exatamente criticando nossas companheiras. Críticas e divergências enriquecem debates e quando feitas de maneira saudável nos trazem maior empatia e, consequentemente, crescimento dentro da militância. Nos dão base para construirmos melhores soluções de apoio e emponderamento a diferentes mulheres.
Infelizmente, ultimamente estamos presenciando ações cada vez mais violentas por parte de feministas radicais. Minha intenção inicial era criticar ações de algumas militantes radicais, porque acreditava que a ação de alguns membros não falava por um movimento como um todo. Além disso, acreditava não ter conhecimento suficiente na teoria radical para me atrever a criticá-la. Lendo mais sobre a corrente, encontrei o seguinte trecho extraído de um texto escrito por feministas radicais:
“A teoria Feminista Radical […] é impossível de desenvolver na ausência de prática, porque nossa teoria é aquela prática e nossa prática é nossa teoria”.
Sendo assim, acredito ser impossível me abster de criticar a teoria radical, já que critico quem age em seu nome. Não quero dizer que a teoria como um todo deve ser criticada, ela luta por mulheres e isso por si só é bastante bem vindo. O problema começa quando nos indagamos: por quais mulheres o feminismo radical luta? Quais mulheres merecem a tão proclamada sororidade?
“O intento revolucionário do feminismo radical é expresso primeira e principalmente em seu centramento na mulher: as experiências e interesses das mulheres estão no centro de nossa teoria e prática. É a única teoria por e para mulheres”
(ROWLAND; KLEIN, p. 2, 1997)
Já presenciei casos de silenciamento, embranquecimento, perseguição e tokenização de mulheres negras e periféricas por feministas radicais (alguns de feministas radicais negras). Já presenciei violências contra pessoas trans* como deslegitimação de gênero, exposição de nomes de registro e criação de páginas na internet com o único intuito de perseguir pessoas trans*. Já li confissões orgulhosas de violência contra uma mulher trans* e negra numa discussão que participei certa vez.
“Eu acredito que o sexismo é a raiz da opressão, aquela que, até e a não ser que extirpemos, continuará a se estender nos ramos do racismo, do ódio de classe, etarismo, competição, desastre ecológico e exploração econômica”
(MORGAN apud ROWLAND; KLEIN, p.2, 1997)
O feminismo radical defende que a raiz de todas as de opressões é o patriarcado. Enquanto isso mães negras presenciam os assassinatos de seus filhos homens negros todos os dias (por serem negros, não por serem homens). Enquanto mães negras heterossexuais têm que sair para trabalhar com seus filhos ainda pequenos para complementar a renda de casa, já que seus maridos ganham menos que mulheres brancas.
Feminismo radical defende a lesbianismo político, enquanto mulheres negras de todas as orientações sexuais sofrem de solidão por não serem boas o suficiente para namorar.
Feminismo radical não considera a sua luta uma luta de pessoas trans*, enquanto mulheres trans* e negras sofrem com a exploração sexual, com a patologização de seus corpos e mentes, com a transmisoginia.
Feministas radicais celebram sua condição de “fêmea” enquanto mulheres negras foram escravizadas, exploradas e violentadas exatamente por serem tratadas como animais.
A teoria radical defende que “o pessoal é político” e que a luta coletiva deve ser priorizada. E assim me indago novamente: por quais mulheres o feminismo radical luta? Quais mulheres fazem parte deste coletivo? Ou para o feminismo radical são mulheres apenas aqueles indivíduos que ele elege como tal?
Por último gostaria de deixar um, sempre citado mas muito pertinente para essa discussão, trecho de um texto de Audre Lorde e que sintetiza meu posicionamento:
“Eu não posso me dar ao luxo de lutar contra uma forma de opressão apenas. Não posso me permitir acreditar que ser livre de intolerância é um direito de um grupo particular. E eu não posso tomar a liberdade de escolher entre as frontes nas quais devo batalhar contra essas forças de discriminação, onde quer que elas apareçam para me destruir. E quando elas aparecem para me destruir, não demorará muito a aparecerem para destruir você.”
Referências:
KLEIN, Robyn; ROWLAND,Renate. Feminismo Radical: História, Política, Ação. Disponível em: <https://materialfeminista.milharal.org/files/2013/07/Feminismo-Radical-História-Política-Ação-Robyn-Rowland-e-Renate-Klein-parte.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2014.
LORDE, Audre. Não existe hierarquia de opressão. Disponível em: <http://questoesplurais.tumblr.com/post/44254320873/nao-existe-hierarquia-de-opressao>. Acesso em: 18 jul. 2014.
MCKINSTRY, Shavon L.. Raça é uma questão feminista. Disponível em: <http://questoesplurais.tumblr.com/post/44826631717/raca-e-uma-questao-feminista>. Acesso em: 18 jul. 2014.
Imagem de destaque – Reprodução web.