Sociedade capitalista, racismo e sexismo: a importância da autocrítica feminista

Nas décadas de 1970 e 1980 feministas negras como Angela Davis, bell hooks e Lélia Gonzalez já apontavam que a luta antirracista é indissolúvel da luta de classes. A recusa de feministas em reconhecer outras experiências de mulheres (que não as brancas, universitárias e de classe média) suprimiu a conexão entre raça e classe, escamoteando a situação de privilégio de um seleto grupo de mulheres forjado pelo discurso da “opressão comum”.

À medida que mais e mais mulheres adquiriram prestígio, fama ou dinheiro a partir de textos feministas ou de ganhos com o movimento feminista por igualdade no mercado de trabalho, o oportunismo individual prejudicou os apelos à luta coletiva.

bell hooks

Não há capitalismo sem racismo.

Malcolm X

Não há luta antirracista e antissexista fora da luta de classes. Pesquisas que sintetizam informações estatísticas desagregadas em gênero e raça como o Anuário das Mulheres Brasileiras (2011) evidenciam a situação de indigência e pobreza vivida por mulheres negras e a sua concentração em postos de trabalhado vulneráveis como o trabalho doméstico e o de cuidados em regiões metropolitanas e Distrito Federal. Os recentes estudos sobre relações de gênero no mundo do trabalho pouco têm avançado em considerar a questão racial como um dos principais elementos na distribuição de lugares e papéis sociais que constituem as desigualdades na sociedade capitalista.

Esse silenciamento pode ser explicado pela maneira como vem se consolidando os estudos feministas e de gênero nas universidades brasileiras com produções teóricas cada vez mais sofisticadas e distanciadas da realidade de mulheres pobres e racializadas que compõem parte significativa da força de trabalho. Para bell hooks (1984), “tem sido mais fácil para as mulheres brancas que não vivenciam opressão de raça ou classe se concentrarem exclusivamente no gênero”.

Nas décadas de 1970 e 1980 feministas negras como Angela Davis, bell hooks e Lélia Gonzalez já apontavam que a luta antirracista é indissolúvel da luta de classes. A recusa de feministas em reconhecer outras experiências de mulheres (que não as brancas, universitárias e de classe média) suprimiu a conexão entre raça e classe, escamoteando a situação de privilégio de um seleto grupo de mulheres forjado pelo discurso da “opressão comum”.

Nancy Fraser (2009) lembra o quanto o feminismo prosperou no momento da ascensão do neoliberalismo em que as reivindicações por justiça foram substituídas em função do reconhecimento da identidade e da diferença, reprimindo a memória de um igualitarismo social. A promessa emancipatória do feminismo, aos poucos deu lugar aos interesses individuais de mulheres privilegiadas que almejavam a igualdade com os homens de sua classe. As lutas feministas foram facilmente cooptadas pelo pensamento burguês a medida que mulheres brancas foram beneficiadas pelo movimento.

O capitalismo não cria desigualdades raciais e de gênero, ele as apropria. O racismo e o sexismo operam de modo a criar disputas dentro da própria classe trabalhadora gerando privilégios na competição por ocupações do mercado de trabalho. A divisão sexual do trabalho (HIRATA; KERGOAT, 2007) em que há, supostamente, trabalhos de mulheres e trabalhos de homens, sendo os desses últimos mais valorizados, não funciona da mesma maneira para todas as mulheres. A experiência de mulheres negras na diáspora é a experiência do trabalho, sempre estivemos nas ruas oferecendo todo tipo de serviço.

Cada vez que mais e mais mulheres passaram a ocupar o mercado de trabalho, foi preciso que outras assegurassem seu trabalho doméstico criando uma subdivisão de classe no interior da divisão sexual do trabalho (ÁVILA, 2010). A delegação de tarefas, além de não proporcionar a divisão igualitária do trabalho reprodutivo entre homens e mulheres, perpetua as desigualdades entre mulheres, assim como as desigualdades raciais, já que são as mulheres negras que historicamente ocupam o lugar do trabalho doméstico remunerado.

Se a autocrítica faz parte da ação e da elaboração teórica dos feminismos como alguém pode considerar a si mesmo como feminista sendo liberal e racista? Muitas organizações contemporâneas de mulheres negras sequer utilizam o termo “feminismo” para designar sua prática política. No entanto, o que costumamos nomear de prática feminista negra ou pensamento negro feminista é o conhecimento gerado a partir da própria experiência em resposta às opressões que interseccionam gênero, raça, classe e sexualidade (COLLINS, 2012), afirmando um posicionamento crítico ao feminismo hegemônico que pouco tem nos representado. É necessário refletir sobre qual emancipação queremos, pois as lutas antissexistas e antirracistas por si só não abalam as estruturas do capitalismo que, por seu oportunismo sistemático, apropria-se das desigualdades raciais e de gênero para acirrar a exploração econômica e fragmentar todas as formas de resistência.

Referências:

ÁVILA, Maria Betânia. Divisões e tensões em torno do tempo do trabalho doméstico no cotidiano. Revista do Observatório Brasil da Igualdade de Gênero. Edição especial – Tema: Trabalho e Gênero. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2010. p.67-76.

COLLINS, Patricia Hill. Rasgos distintivos del pensamiento feminista negro. In: JABARDO, Mercedes (Ed.). Feminismos negros: uma antología. España: Traficantes de Sueños, 2012. p. 99 a 134.

DIEESE. Anuário das mulheres brasileiras. São Paulo: DIEESE, 2011.

FRASER, Nancy. O feminismo, o capitalismo e a astúcia da história. Mediações. Londrina, v. 14, n. 2, p. 11-22, jul./dez. 2009.

HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. São Paulo, Cadernos de pesquisa, v. 37, n. 132, set.-dez. 2007, p. 595-609.

HOOKS, bell. Feminist Theory: from margin to center. Boston and Brooklyn: South End Press Classics, 1984.

12 comments
  1. Brilhante reflexão Marjorie. Excelente oportunidade para enriquecer nossas rodas de debates por uma educação antissexista por uma educação mais justa que prime pelo respeito e o exercício da cidadania.

    1. Olá, Renata!

      Fico muito feliz com o seu retorno. Acho esse debate oportuno na atual conjuntura política que estamos vivendo, embora eu tenha escrito o texto há pouco mais de um ano. Seguimos na luta!

      Abraço.

  2. Oi Marjorie;
    O texto é muito bacana! Creio que precisamos aprofundar nossos olhares para as formas que a raça define o gênero. E discutir as experiências de mulheres negras nos mundos do trabalho é um caminho essencial para tal aprofundamento. Sou historiadora e tenho um blog voltado para discutir as experiências de mulheres negras na primeira pessoa. Passa lá: http://pretasdotoras.blogspot.com.br/
    Um beijo e parabéns pelo texto,
    Giovana.

  3. Oi Marjorie.
    Parabéns pelo texto! A tematica do texto é fundamental principalmente para basear nossas reivindicações como a ampliação das vagas nas universidades e acesso a elas pelxs negrxs, indígenas e outras minorias que constroem as lutas cobtra opressão. Ninguém pode falar por nós, queremos o nosso espaço para fazer ecoar nossa voz. Não precisamos e/ou queremos falar através de ninguém.
    Mas no seu texto, fiquei em dúvida sobre a afirmação: “O capitalismo não crias as desigualdades raciais e de gênero, ele as apropria”.
    Segundo essa afirmação, poderíamos concluir que não é necessário acabar com este sistema econômico. Ou seja, poderíamos “modificar” esta característica do capitalismo que teríamos um sistema mais brando.
    Fico em dúvida se não seria mais preciso dizer que o capitalismo se apropria e resignifica as diferenças?
    Afinal, diferença e desigualdades são categorias diferentes.
    Mais uma vez, parabéns pelo texto.
    Abraços.

    1. Carolina, obrigada pelo questionamento instigante! Em relação a sua dúvida, o texto propõe justamente o contrário, creio que você tenha isolado a frase. Não existe a menor possibilidade de haver um capitalismo mais brando, é um sistema que sobrevive da exploração, é totalmente perverso. A questão é que racismo e sexismo podem existir em outros contextos de organização econômica não-capitalistas. Significar dizer que, mesmo se o capitalismo deixasse de existir como sistema econômico, não poderíamos garantir o fim de outras formas de opressão extraeconômicas. Não é do meu interesse induzir à ideia de “diferença” e “desigualdade” como sinônimos pois, obviamente, não são. Além de feminista negra, sou uma feminista materialista. Acredito na ideia de unidade nas diferenças. Um grande abraço.

  4. O texto é muito oportuno, e também traz uma instigante reflexão sobre como aproximar produções científicas do nosso dia a dia de mulher negra pobre para assim buscarmos formas de emacipação que rompam com este sistema racista e sexista.

  5. Excelente texto. Me faz pensar na ilusão que mulheres brancas de classes privilegiadas tem reproduzido, quando se apegam num discurso pela “liberdade de escolha”, ao pensa na relação entre maternidade e trabalho remunerado. Liberdade individual é fundamental para avançarmos nos direitos das mulheres, mas sem uma consciência de classe ela é facilmente capturada pelo capitalismo, e seguimos reproduzindo desigualdades e ignorando o racismo.

    1. É necessário vislumbrar outras possibilidades de emancipação que não estejam fundamentadas em ideais liberais. O capitalismo se utiliza do racismo e do sexismo para tornar a força de trabalho de mulheres, negros e, principalmente, de mulheres negras mais barata. É preciso desconstruir a definição de emancipação (faço minhas as palavras de bell hooks) como a obtenção de igualdade social com os homens brancos da classe dominante. Grata pelo retorno, Carolina!

  6. Obrigada, Aline! Como havia dito no meu perfil no Facebook, o tema carece de um debate amplo e há uma atual e insistente rejeição em se pensar as conexões entre capitalismo e questão racial numa perspectiva de gênero, veja pela baixa receptividade a qui mesmo no blog. Como ignorar a materialidade das condições de vida de mulheres negras? Creio que o conceito de interseccionalidade, como tem sido pensada pelas femininistas negras norte-americanas, é uma ferramenta que devemos usar na nossa prática e na nossa produção de conhecimento.

  7. Muito bom o texto Marjorie! Interessante e reflexivo (que é justamente esse o convite, mas para além da reflexão acho que o texto é propositivo) a questão da apropriação do capitalismo das desigualdades raciais e de gênero. O que você colocou é perfeito no sentido de que temos de ter o olhar atento para isso, por que senão se dilui. Somente uma categoria, pensemos raça, não explica tudo, classe tampouco, dentre outras. O texto também é um alerta para nós (falo do meu lugar de mulher negra), senão vemos tudo como uma questão de raça, e há outros elementos. Senão caímos em um essencialismo, que para mim é muito perigoso. Gostei!

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