Fizemos 10 anos de caminhada em um ano bastante desafiador em todas as esferas das nossas vidas. A palavra cansaço foi uma constante, sem que muitas de nós pudessem sequer respirar, motivadas ou interrompidas pela urgência da vida e da luta. Somos continuidade de diversas estórias e vidas, ancestralidades, cotidianos e anseios, afrofuturos. Entretanto, nem sempre concordaremos em nossas ações e projetos políticos ou vamos caminhar de mãos dadas.
Mas, existe algo comum entre as mulheres negras: as consequências de vivermos sob uma sociedade racista, que é aliada a tantas outras violências que nos afetam em nossas diversas mulheridades. É a cristalina compreensão de que todas nós estamos trabalhando por algo muito maior que os nossos próprios interesses e o nosso tempo na terra. Seja por nossas famílias, seja por uma sociedade mais justa.
Essa lista, que mais uma vez apresentar os textos mais lidos de 2022, sem organizá-los em ordem classificatória ou de visualizações, é um exemplo disso. O que reúne esses escritos é o exercício da crítica como ideia e prática para mudar o mundo, exemplo da proposta de Patrícia Hill Collins, expressando um universo significativo sobre aquilo que moveu as mentes, os corações e as mãos de mulheres negras brasileiras.
Imagens de uma escrita sobre AFETOS, que muitas de nós reconhecemos também pela dor, como registrado em Carta ao Orun de Gabi Porfírio, constatando que “A morte existe”. Uma dor que também nos atinge quando nos dirigimos À mulher que queria ser branca, aquela que eu fui de Thayz Athayde, um registro de que é “possível se curar das violências racistas, mas antes disso tem muita raiva”. E também enfrentar o próprio ÓDIO, como poetisa Elisa Mattos para falar sobre o desejo de “abrir mil feridas” em quem nos fere.
E que nos incita à PARTICIPAÇÃO POLÍTICA como estrutura A transformação cozida sob pressão da Mandata Popular da Vereadora Lins Robalo ao promover um projeto “coletivo (que) tem força e poder” fundado a partir de “ações em desacordo com o que está estabelecido”, nossa única opção. O que nos direciona ao questionamento de Juliana Sankofa em Nós sempre votaremos em branco?, um convite e uma provocação sobre a necessidade de “eleger o branco de esquerda devido a visibilidade que ele tem”.
Não se faz Democracia sem JUSTIÇA SOCIAL, como negrita Larissa Santiago ao indagar “qual é o melhor discurso-ação contra a violência racial?” em Em legítima defesa: fogo nos racistas!, num país que ainda tem como projeto a disposição de nossos corpos, como denuncia Ana Flávia Magalhães Pinto em 200 anos da Independência: Brasil não superou narrativa do povo subalterno. Afinal, “que histórias seremos capazes de contar como nação daqui a cinquenta anos?” As meninas, mulheres do amanhã, ainda terão de levantar suas vozes e pensar estratégias políticas e de cuidado Contra violência obstétrica e o estupro! Pela vida das mulheres!, como pensou Rafaela Albergaria?
A viagem proposta por Dheik Praia em O corpo-território no Rio Paraguaçú nos faz também indagar sobre “quem está clamando por socorro? O corpo ou o Rio?” e nos traz a urgência das questões apocalípticas que já castigam nossos corpos, como aquelas registradas em Entrevista com Raquel Silva de Blogueiras Negras. Não sem a triste constatação, choramos todas nós e também os rios.
Memórias de resistência que também estão sendo tecidas na ACADEMIA, um dos espaços de poder centrais na manutenção e aprofundamento das desigualdades que vivemos hoje e que precisam ser urgentemente enfrentadas para construirmos uma sociedade de livre pensar, como registrou Okúm Omobirin em Racismo acadêmico: o relato de uma quase sobrevivente e Política de respeitabilidade do branco nos espaços universitários: o latifúndio acadêmico.
Memórias de um “agora” que dialogam intimamente com os relatos escritos por Daisy Santos em Doutorado sanduíche e a saga para chegar até aqui, um movimento que busca “partilhar um pouco da experiência” de uma pesquisadora negra em Nova Iorque. E nos faz compreender os sentimentos e o sonho de Juliana Sankofa (e de todas nós) de que “sejamos reconhecidos pela nossa humanidade apesar da ignorância de quem pretere pessoas por causa da cor da pele” em A minha reza é fogo nos racistas.
Também o CORPO E A IDENTIDADE fizeram a nossa cabeça esse ano, como pensou Maria Rita Casagrande em Nossos cabelos são sempre um nervo exposto. “Diante das reações em torno do que aconteceu na cerimônia do Óscar, do visível desconforto de Jada diante da zombaria grosseira”, uma reflexão e alerta sobre a alopecia escrita para mulheres negras.
Escrita que também implica a crítica à ARTE como expressão de uma outra SOCIEDADE, como ficou registrado em Nota de observação de Xênia França, Liniker, Luedji Luna, Mahmundi, Luciane Dom, Ellen Oléria, Gabi Amarantos, Bia Ferreira, Lio, Majur, Larissa Luz, Anelis Assumpção, Tássia Reis, Teresa Cristina, Brisa Flow, Karol Conka, Kaê Guajajara e Marissol Mwaba, que reivindicam que “as curadorias devem ser profundamente pensadas de forma coletiva e justa, onde as oportunidades se estendam com mais equilíbrio”.
Em um ano em que o audiovisual negro estadunidense nos brindou com dois longas incríveis, Charô Nunes refletiu em Um viva ao rei. Vida longa às rainhas. Vida longa às irmãs e Uma política de identidade necessária: O homem que caiu na terra como seria se pudéssemos ocupar o controle das nossas narrativas nesse espaço. Um “alerta negro, Isso é política” sobre a produção de imagens e discursos que nos ajudam a navegar em um mundo que nos mata existencial e concretamente.
Um exemplo de como É libertador escrever da forma como a gente existe, como afirmou a Yalaxé do Ilê Obá Aganjú Okoloyá, Olefun Helaynne Sampaio, em entrevista a Viviane Gomes, autora do livro Dança Nagô: herança ancestral e resistência matriarcal do Balé Nagô Ajô, corpo que dança Afoxé Oyá Alaxé que emocionou Mãe Amara, a benção, ao “ver a história da nossa família num livro”.
Sentimentos que também são nossos diante da possibilidade de mais um ano registrar a memória politica das mulheres negras, algo resumido nesses 20 textos mais lidos do ano. Que dialogam com todas nós e nos convidam à tarefa de pensar afrofuturos também a partir das nossas existências sagradas, concretas, cotidianas e narradas.
Um pequeno legado de memórias que respeitosamente dedicamos às companheiras de amanhã, ontem e agora. Nós estivemos aqui, conscientes de nossas temporalidades, contradições e registramos nossas escritas também com o anseio e a esperança de podermos transmitir “nossa experiência para quem está chegando” e para quem já chegou nesse futuro que é agora. Autoras, continuem escrevendo. Leitoras e leitores, continuem apoiando a escrita das mulheres negras. Em 2023 tem mais!
Referência
COLLINS, Patricia Hill. Bem mais que ideias. Editora BoiTempo. São Paulo. 2022.
GONZALEZ, Lélia. Lelia Gonzalez – Uma mulher de luta. Entrevista ao Jornal MNU. Arquivo Marxista na internet. Disponível em <https://www.marxists.org/portugues/gonzalez/ano/mes/91.htm>. Acessado em 15 de dezembro de 2022.